AAS
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Análise Profunda

AAS (Aspirina): Guia Completo Sobre Usos, Riscos e Prevenção Cardiovascular

Por ResumeAi Concursos
Estrutura molecular da Aspirina (ácido acetilsalicílico) para prevenção cardiovascular.

Da bancada do laboratório ao armário de remédios de casa, poucos medicamentos têm uma história tão rica e um impacto tão profundo na saúde global quanto o Ácido Acetilsalicílico (AAS). Conhecido popularmente como Aspirina, ele transcendeu sua função original de aliviar dores e febres para se tornar uma ferramenta crucial na cardiologia moderna. No entanto, a era do "AAS para todos" chegou ao fim. As recomendações atuais são mais criteriosas do que nunca, transformando o que parecia ser uma decisão simples em uma complexa balança entre benefício e risco. Neste guia completo, nosso objetivo é desmistificar o AAS, capacitando você a entender seu verdadeiro papel na prevenção cardiovascular, os cenários em que ele salva vidas, as situações em que pode ser perigoso e como as decisões clínicas são tomadas hoje, com base nas evidências mais robustas.

O que é o AAS e Como Ele Atua no Organismo?

O Ácido Acetilsalicílico, ou AAS, é um dos medicamentos mais versáteis do mundo, atuando como analgésico (para dor), antipirético (para febre) e anti-inflamatório. Contudo, seu papel mais impactante na medicina moderna está em sua poderosa ação como antiagregante plaquetário.

A chave para seus múltiplos efeitos está na inibição de enzimas chamadas ciclooxigenases (COX), que produzem substâncias como prostaglandinas e tromboxano, envolvidas em processos de inflamação, dor e, crucialmente, na formação de coágulos. O efeito do AAS depende da dose:

  • Doses altas: Atua como um clássico anti-inflamatório não esteroide (AINE), inibindo tanto a COX-1 quanto a COX-2.
  • Doses baixas (75mg a 100mg diários): O alvo principal torna-se a enzima COX-1 nas plaquetas, as células sanguíneas que iniciam a coagulação. É aqui que reside sua magia cardiovascular.

A Ação Antiplaquetária: O Coração da Prevenção

O efeito antitrombótico do AAS acontece da seguinte forma:

  1. Inibição Irreversível: O AAS desativa a enzima COX-1 nas plaquetas de forma permanente. Uma vez exposta ao AAS, a plaqueta perde sua capacidade de agregação por toda a sua vida (7 a 10 dias).
  2. Bloqueio do Tromboxano A2: Ao inibir a COX-1, o AAS impede a produção de tromboxano A2, um sinalizador que chama outras plaquetas para formar um coágulo (trombo). Sem esse sinal, as plaquetas se tornam menos "pegajosas".

Imagine uma placa de gordura (ateroma) na parede de uma artéria do coração que se rompe — o evento que desencadeia um infarto. O organismo envia plaquetas para o local, que se agregam massivamente e formam um trombo que pode obstruir a artéria, causando um infarto agudo do miocárdio (IAM) ou um acidente vascular cerebral (AVC) isquêmico. Ao inibir essa agregação, o AAS em baixas doses impede a formação desse coágulo perigoso, sendo uma pedra angular na prevenção e tratamento de eventos cardiovasculares.

É fundamental diferenciar o AAS de outros medicamentos, como os anticoagulantes. Os antiagregantes (AAS) impedem que as plaquetas se unam, sendo eficazes em coágulos arteriais (ricos em plaquetas). Já os anticoagulantes (ex: varfarina, rivaroxabana) atuam em outras etapas da cascata de coagulação e são essenciais para condições como fibrilação atrial, trombose venosa profunda (TVP) e tromboembolismo pulmonar (TEP), onde o AAS não é o tratamento adequado.

AAS na Prevenção Cardiovascular: Quando e Para Quem Indicar?

Com esse poderoso mecanismo em mente, a questão crucial se torna: quem realmente se beneficia do uso do AAS? A resposta depende da distinção entre dois cenários: prevenção secundária e prevenção primária.

Prevenção Secundária: Um Pilar Consolidado

A prevenção secundária visa evitar a recorrência de um evento cardiovascular em pacientes que já sofreram um. Neste cenário, o papel do AAS é consolidado e indiscutível. A indicação é clara para pacientes com doença cardiovascular aterosclerótica estabelecida, incluindo histórico de:

  • Infarto Agudo do Miocárdio (IAM)
  • Acidente Vascular Cerebral (AVC) isquêmico
  • Angina estável ou instável
  • Doença arterial periférica sintomática
  • Pós-revascularização miocárdica (angioplastia com stent ou cirurgia de ponte de safena)

Para esses pacientes, o benefício do AAS em baixas doses (75 a 100 mg/dia) supera amplamente os riscos, sendo uma terapia padrão para reduzir a chance de um novo evento e a mortalidade.

Prevenção Primária: A Balança Risco-Benefício

A prevenção primária, por outro lado, visa evitar o primeiro evento em pessoas sem doença cardiovascular conhecida, mas com fatores de risco. É aqui que o debate se intensificou. Estudos robustos mostraram que, para a maioria das pessoas, o uso rotineiro de AAS para prevenção primária oferece um benefício pequeno que não supera o aumento do risco de sangramentos graves, especialmente gastrointestinais e intracranianos.

As diretrizes atuais não recomendam mais o uso de AAS para prevenção primária na maioria dos indivíduos. A prescrição se tornou uma exceção, reservada para grupos de altíssimo risco cardiovascular (geralmente risco calculado >20% em 10 anos) e baixo risco de sangramento, após uma decisão compartilhada entre médico e paciente. Para idosos sem doença cardiovascular, o AAS é geralmente desaconselhado, pois o risco de sangramento aumenta com a idade.

Indicações Clínicas do AAS: de Síndromes Coronarianas a AVC

No cenário agudo, o AAS é uma intervenção de emergência que salva vidas.

Síndromes Coronarianas Agudas (SCA)

Em um infarto agudo do miocárdio ou angina instável, o AAS é a primeira linha de defesa. Sua ação rápida impede o crescimento do trombo que está obstruindo a artéria coronária.

  • Dose de Ataque: Administra-se uma dose de ataque de 160 a 325 mg, preferencialmente mastigável para acelerar a absorção. Essa medida simples demonstrou reduzir a mortalidade cardiovascular em cerca de 23%.
  • Terapia Dupla Antiplaquetária (DAPT): Frequentemente, o AAS é combinado com um segundo antiplaquetário (como clopidogrel ou ticagrelor), especialmente em pacientes submetidos à angioplastia, para uma proteção mais robusta.

Acidente Vascular Cerebral (AVC) Isquêmico

No manejo do AVC isquêmico, o AAS também é fundamental, mas o tempo é crucial.

  • Diagnóstico Diferencial é Chave: Antes de administrar AAS, é imperativo realizar uma tomografia de crânio para excluir um AVC hemorrágico, no qual o AAS seria absolutamente contraindicado.
  • Momento da Administração: Em pacientes que não são candidatos à trombólise (terapia para dissolver o coágulo), o AAS pode ser iniciado nas primeiras 24 a 48 horas. Para pacientes que receberam trombólise, o início do AAS deve ser adiado por pelo menos 24 horas para minimizar o risco de sangramento.

A Balança do Risco: Efeitos Adversos e Contraindicações do AAS

O mecanismo que torna o AAS tão útil é também a fonte de seu principal risco: o sangramento. O sangramento gastrointestinal é a complicação mais comum, e o risco aumenta com doses mais altas. Por isso, a decisão de usar AAS deve sempre pesar o benefício cardiovascular contra os riscos.

Contraindicações e Cuidados Especiais

  • Síndrome de Reye: Uma contraindicação absoluta é em crianças e adolescentes com infecções virais (gripe, catapora), devido ao risco da Síndrome de Reye, uma doença neurológica e hepática grave.
  • Infecções Específicas: O uso de AAS é contraindicado em doenças como Dengue, Chikungunya e Febre Amarela, pois pode agravar o risco de hemorragias graves inerentes a essas infecções.
  • Alergia e Asma: Pacientes com hipersensibilidade ao AAS ou com Doença Respiratória Exacerbada pela Aspirina (DREA) não devem usar o medicamento.
  • Outras Condições: Cautela é necessária em pacientes com gota (pode elevar o ácido úrico) e tireotoxicose (pode piorar o quadro).

Intoxicação por Salicilatos: Reconhecimento e Manejo de Emergência

Em altas doses, o AAS pode causar uma emergência médica chamada salicilismo. O mecanismo de toxicidade é complexo, marcado por um distúrbio ácido-base característico: uma alcalose respiratória inicial (devido à respiração acelerada), seguida por uma acidose metabólica grave.

Os sinais e sintomas evoluem de uma tríade clássica de náuseas, vômitos e zumbido nos ouvidos (tinnitus) para alterações neurológicas (confusão, letargia), febre alta, edema pulmonar e, em casos graves, coma e morte.

O tratamento é uma emergência, focado em medidas de suporte e na aceleração da eliminação do fármaco, pois não existe antídoto. As estratégias incluem:

  • Carvão ativado: Para reduzir a absorção, se a ingestão for recente.
  • Alcalinização urinária: A administração de bicarbonato de sódio intravenoso "aprisiona" o salicilato na urina, acelerando sua excreção.
  • Hemodiálise: É o tratamento de escolha em intoxicações graves, removendo o fármaco do sangue de forma rápida e eficaz.

Manejo Prático do AAS: Suspensão, Cirurgias e Situações Especiais

A decisão de manter ou suspender o AAS, especialmente antes de procedimentos invasivos, depende da razão do seu uso (prevenção primária vs. secundária) e do risco de sangramento da cirurgia.

  • Prevenção Secundária: A regra geral é manter o AAS. A suspensão aumenta o risco de um novo evento cardiovascular, que geralmente supera o risco de sangramento cirúrgico.
  • Prevenção Primária: Como o benefício é menor, a suspensão 7 a 10 dias antes de um procedimento eletivo é frequentemente recomendada.

Existem poucas situações em que a suspensão é obrigatória mesmo em prevenção secundária, devido ao altíssimo risco de sangramento: neurocirurgias, cirurgias de canal medular e algumas cirurgias oftalmológicas específicas. Para a vasta maioria das outras cirurgias, o AAS deve ser mantido. Em cirurgias de urgência, o procedimento não deve ser adiado por causa do AAS.

Uma situação especial é o cateterismo cardíaco, onde o AAS NÃO deve ser suspenso, pois sua manutenção é crucial para a segurança do procedimento.


O percurso do AAS de um simples analgésico a uma medicação cardiovascular de alta precisão ilustra a evolução da medicina baseada em evidências. A mensagem central é clara: o AAS é uma ferramenta poderosa, mas não universal. Seu uso como pilar na prevenção secundária é inquestionável, mas na prevenção primária, tornou-se uma terapia de exceção, reservada para pacientes de altíssimo risco e após cuidadosa avaliação médica. A decisão de iniciar, suspender ou continuar o AAS nunca deve ser tomada de forma leviana.

A compreensão dos seus benefícios, riscos e do manejo adequado é essencial não apenas para profissionais de saúde, mas para todos que buscam cuidar ativamente do seu coração. A era da medicina personalizada exige diálogo e decisões compartilhadas.

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