ascite cirrose hepática
tratamento ascite cirrose
diagnóstico ascite hepática
paracentese ascite
Guia Completo

Ascite na Cirrose Hepática: Guia Completo de Causas, Diagnóstico e Tratamento

Por ResumeAi Concursos
**** Fígado com cirrose, superfície nodular e acúmulo de líquido ascítico ao redor, ilustrando ascite na cirrose hepática.

A ascite, o incômodo acúmulo de líquido no abdômen, é mais do que um sintoma da cirrose hepática – é um divisor de águas na jornada do paciente, sinalizando uma fase avançada da doença e exigindo uma compreensão aprofundada para seu manejo eficaz. Este guia completo foi elaborado por nossa equipe editorial para desmistificar a ascite decorrente da cirrose, desde suas causas fundamentais e os métodos diagnósticos precisos, até as diversas estratégias de tratamento e o gerenciamento de suas temidas complicações. Nosso objetivo é capacitar você, leitor, com conhecimento claro e prático sobre essa condição complexa, melhorando o entendimento e a abordagem terapêutica.

O Que É a Cirrose Hepática e Como Ela Causa Ascite?

A cirrose hepática representa o estágio final e, em grande medida, irreversível de diversas doenças crônicas que afetam o fígado. Ela é caracterizada por um processo de lesões hepáticas recorrentes que levam a uma profunda alteração na arquitetura normal do órgão. Imagine o tecido hepático saudável sendo progressivamente substituído por tecido fibrótico (cicatricial) e pela formação de nódulos de regeneração – tentativas do fígado de se reparar, mas que resultam em uma estrutura desorganizada e disfuncional. Embora o diagnóstico definitivo possa ser confirmado por uma biópsia hepática, este procedimento é geralmente reservado para casos onde há dúvida diagnóstica, sendo o diagnóstico frequentemente estabelecido com base nas manifestações clínicas, exames laboratoriais e de imagem.

Diversas condições podem levar ao desenvolvimento da cirrose. Entre as principais causas, destacam-se:

  • O consumo excessivo e prolongado de álcool.
  • As hepatites virais crônicas, principalmente pelos vírus B e C.
  • A esteatohepatite não alcoólica (NASH), popularmente conhecida como "fígado gorduroso" inflamado, frequentemente associada à obesidade e diabetes.
  • Doenças autoimunes, como a hepatite autoimune e a colangite biliar primária.
  • Doenças metabólicas hereditárias, como hemocromatose (acúmulo de ferro) e doença de Wilson (acúmulo de cobre).
  • Exposição a certos fármacos e toxinas.

Uma das complicações mais comuns e marcantes da cirrose hepática é a ascite, definida como o acúmulo anormal de líquido dentro da cavidade abdominal (peritoneal). Estima-se que cerca de 50% dos pacientes com cirrose desenvolvam ascite ao longo de 10 anos de acompanhamento da doença, sendo um sinal de progressão e, frequentemente, de doença avançada.

Mas como exatamente a cirrose leva ao surgimento da ascite? O mecanismo central é a hipertensão portal. Na cirrose, a fibrose e os nódulos distorcem a estrutura do fígado, criando uma resistência significativa ao fluxo de sangue que chega ao órgão pela veia porta. Essa dificuldade de passagem eleva a pressão dentro da veia porta e seus ramos, um fenômeno conhecido como hipertensão portal. Este aumento de pressão nos pequenos vasos do fígado (sinusoides hepáticos) faz com que o plasma sanguíneo (a parte líquida do sangue, rica em linfa) extravase para a cavidade peritoneal.

Além da hipertensão portal, outros fatores contribuem para a formação da ascite na cirrose:

  1. Vasodilatação Esplâncnica: Na cirrose, ocorre uma dilatação dos vasos sanguíneos na circulação abdominal (esplâncnica), em parte devido ao aumento da produção de óxido nítrico. Isso leva a um "sequestro" de volume sanguíneo nessa região, diminuindo o volume circulante efetivo no resto do corpo. O organismo interpreta isso como uma baixa pressão arterial e ativa sistemas para reter sódio e água (como o sistema renina-angiotensina-aldosterona), piorando o acúmulo de líquido.
  2. Hipoalbuminemia: O fígado cirrótico tem sua capacidade de produzir proteínas, como a albumina, reduzida. A albumina é crucial para manter o líquido dentro dos vasos sanguíneos. Sua baixa concentração no sangue (hipoalbuminemia) diminui a pressão oncótica vascular, facilitando a saída de líquido para os tecidos e cavidades, incluindo o peritônio.

O líquido ascítico na cirrose geralmente é um transudato, pobre em proteínas (tipicamente inferior a 2,5 g/dL) e com um Gradiente de Albumina Soro-Ascite (GASA) maior ou igual a 1,1 g/dL, refletindo a hipertensão portal como causa primária.

Os sinais e sintomas da ascite variam conforme o volume de líquido acumulado:

  • Aumento do volume abdominal (inchaço da barriga).
  • Ganho de peso inexplicável.
  • Sensação de saciedade precoce durante as refeições.
  • Desconforto ou dor abdominal.
  • Dificuldade para respirar (dispneia), especialmente quando o volume de líquido é grande e comprime o diafragma. No exame físico, o médico pode identificar a presença de líquido através de manobras como a percussão do abdômen, detectando a macicez móvel (som maciço que muda de lugar com a posição do paciente) ou o sinal do piparote (onda líquida transmitida).

A ascite é classificada em graus de severidade:

  • Grau I (Leve): Detectável apenas por exames de imagem, como a ultrassonografia. O paciente pode não ter sintomas.
  • Grau II (Moderada): Causa distensão abdominal visível e moderada, geralmente simétrica.
  • Grau III (Volumosa ou Tensa): Provoca distensão abdominal acentuada, podendo causar grande desconforto e dificuldade respiratória.

Compreender a cirrose e sua íntima relação com a ascite é fundamental para o manejo adequado desta complexa condição médica.

Diagnosticando a Ascite na Cirrose Hepática: Exames e Procedimentos Essenciais

A presença de ascite em um paciente com cirrose hepática levanta a necessidade imediata de uma investigação diagnóstica cuidadosa. Embora a cirrose seja a causa mais frequente, é fundamental confirmar a etiologia, avaliar a gravidade e, crucialmente, descartar complicações potencialmente fatais, como a Peritonite Bacteriana Espontânea (PBE).

A jornada diagnóstica inicia-se com uma avaliação clínica detalhada, incluindo histórico médico e exame físico, onde sinais como o aumento do volume abdominal, macicez móvel à percussão e o sinal do piparote podem ser sugestivos. Exames de imagem, como a ultrassonografia abdominal, são valiosos para confirmar a presença de líquido ascítico, estimar seu volume e guiar procedimentos invasivos.

No entanto, o pilar para o diagnóstico etiológico e a detecção de complicações da ascite é a paracentese diagnóstica. Este procedimento consiste na punção da cavidade abdominal e coleta de uma amostra do líquido ascítico para análise laboratorial.

Quando a Paracentese Diagnóstica é Indicada?

A paracentese diagnóstica é considerada essencial e mandatória nas seguintes situações:

  • Em todo paciente com ascite recém-diagnosticada.
  • Em pacientes cirróticos com ascite já conhecida que são internados no hospital, independentemente do motivo da internação.
  • Em pacientes cirróticos com ascite que apresentam sinais de deterioração clínica, como febre, dor abdominal, piora da função renal, encefalopatia hepática, leucocitose, acidose ou hipotensão.

A coleta do líquido deve ser feita com técnica asséptica, e a utilização da técnica em Z (deslocando a pele antes da inserção da agulha) pode ajudar a minimizar o risco de vazamento de líquido ascítico após o procedimento.

Análise do Líquido Ascítico: Decifrando as Pistas

O líquido ascítico coletado é uma fonte rica de informações. A análise laboratorial inicial e fundamental inclui:

  1. Aspecto Macroscópico:

    • Claro ou amarelo-citrino: Típico da ascite cirrótica não complicada.
    • Turvo ou purulento: Sugere infecção (ex: PBE).
    • Hemático (sanguinolento): Pode ocorrer por trauma durante a punção, mas também pode indicar malignidade ou tuberculose.
    • Leitoso (quiloso): Sugere obstrução linfática, frequentemente por neoplasias ou trauma.
  2. Gradiente de Albumina Soro-Ascite (GASA):

    • Este é o parâmetro mais acurado para determinar se a ascite é causada por hipertensão portal.
    • Calculado subtraindo-se a concentração de albumina no líquido ascítico da concentração de albumina no soro (sangue), coletadas preferencialmente no mesmo dia.
    • GASA ≥ 1,1 g/dL: Indica hipertensão portal com alta probabilidade (acurácia >97%). É o achado esperado na cirrose hepática, insuficiência cardíaca congestiva e síndrome de Budd-Chiari.
    • GASA < 1,1 g/dL: Sugere que a ascite não é primariamente devida à hipertensão portal. Causas incluem carcinomatose peritoneal, tuberculose peritoneal, pancreatite e síndrome nefrótica.
  3. Contagem Celular (Total e Diferencial):

    • Crucial para o diagnóstico de Peritonite Bacteriana Espontânea (PBE).
    • Uma contagem de polimorfonucleares (neutrófilos) ≥ 250 células/mm³ no líquido ascítico é diagnóstica de PBE em pacientes cirróticos, mesmo na ausência de sintomas ou cultura positiva. O tratamento antibiótico deve ser iniciado imediatamente.
    • Um predomínio de linfócitos pode levantar suspeita de tuberculose peritoneal ou carcinomatose.
  4. Proteínas Totais:

    • Embora o GASA seja superior para identificar hipertensão portal, a dosagem de proteínas ainda oferece informações úteis:
      • Na ascite cirrótica (GASA ≥ 1,1 g/dL), as proteínas são tipicamente baixas (< 2,5 g/dL), refletindo a baixa capacidade de opsonização do líquido e o risco aumentado de PBE.
      • Na ascite cardíaca (GASA ≥ 1,1 g/dL), as proteínas são geralmente mais elevadas (≥ 2,5 g/dL) devido à congestão hepática.
      • Em ascites com GASA < 1,1 g/dL (ex: carcinomatose, tuberculose), as proteínas frequentemente são elevadas (> 2,5 g/dL).
  5. Cultura:

    • Essencial para identificar o agente etiológico em caso de infecção (PBE ou peritonite secundária) e orientar a antibioticoterapia.
    • Para maximizar a sensibilidade, o líquido ascítico deve ser inoculado em frascos de hemocultura à beira do leito.
  6. Citologia Oncótica:

    • Indicada se houver suspeita de malignidade (ex: GASA < 1,1 g/dL, história de câncer, líquido hemático).

Outros Exames Relevantes Conforme a Suspeita Clínica:

  • Glicose e LDH (Lactato Desidrogenase): Podem ajudar a diferenciar PBE de peritonite bacteriana secundária (PBS – geralmente por perfuração de víscera). Na PBS, a glicose no líquido ascítico costuma ser baixa (< 50 mg/dL), o LDH elevado (frequentemente com relação LDH líquido/soro > 1.0) e as proteínas totais > 1 g/dL, além de cultura polimicrobiana.
  • ADA (Adenosina Deaminase): Níveis elevados são sugestivos de tuberculose peritoneal, especialmente se GASA < 1,1 g/dL e predomínio de linfócitos.
  • Amilase: Níveis significativamente elevados no líquido ascítico são característicos de ascite pancreática.
  • Triglicerídeos: Concentrações elevadas (> 200 mg/dL, ou superiores ao plasma) são diagnósticas de ascite quilosa.

A Importância do Diagnóstico Diferencial

Embora a cirrose seja responsável pela maioria dos casos de ascite, é imperativo considerar outras etiologias, pois o tratamento e o prognóstico variam drasticamente:

  • Ascite Cardíaca: GASA ≥ 1,1 g/dL, proteínas no líquido ≥ 2,5 g/dL.
  • Ascite Neoplásica (Carcinomatose Peritoneal): GASA < 1,1 g/dL, proteínas frequentemente elevadas, citologia oncótica pode ser positiva.
  • Ascite Tuberculosa: GASA < 1,1 g/dL, proteínas elevadas, predomínio de linfócitos, ADA elevado.
  • Ascite Pancreática: GASA < 1,1 g/dL, amilase muito elevada no líquido.
  • Ascite na Síndrome Nefrótica: GASA < 1,1 g/dL, proteínas tipicamente baixas no líquido (< 2,5 g/dL) devido à hipoalbuminemia sistêmica.

Em resumo, o diagnóstico da ascite na cirrose hepática é um processo multifatorial que se apoia fortemente na paracentese diagnóstica e na análise criteriosa do líquido ascítico. Esta abordagem não só confirma a relação da ascite com a hipertensão portal, mas também é vital para identificar complicações como a PBE e diferenciar de outras causas, garantindo o manejo mais adequado para cada paciente.

Tratamento da Ascite Cirrótica: Dieta, Diuréticos e Outras Medidas

O manejo da ascite em pacientes com cirrose hepática visa, primordialmente, controlar o volume de líquido acumulado, aliviar o desconforto abdominal e respiratório, e prevenir complicações graves como a peritonite bacteriana espontânea (PBE) e a síndrome hepatorrenal. Além da abstinência alcoólica, que é fundamental em casos relacionados ao álcool, a estratégia terapêutica inicial se baseia em modificações dietéticas e no uso criterioso de diuréticos.

Objetivos Terapêuticos Claros: O sucesso do tratamento é frequentemente monitorado pela perda de peso. O objetivo é uma redução ponderal de aproximadamente 0,5 kg por dia em pacientes sem edema periférico (inchaço nas pernas) e de até 1 kg por dia naqueles que apresentam edema associado.

1. Manejo Dietético e Hídrico: A Base do Tratamento

  • Restrição de Sódio: Esta é a pedra angular do tratamento inicial. A cirrose frequentemente leva à retenção de sódio pelos rins, um mecanismo central na formação da ascite. Recomenda-se uma dieta com restrição de sódio para menos de 2 gramas por dia (equivalente a cerca de 5 gramas de sal de cozinha – cloreto de sódio). Esta medida, isoladamente, pode ser suficiente para controlar a ascite em uma pequena parcela de pacientes, especialmente aqueles com ascite leve e boa excreção urinária de sódio. É crucial orientar o paciente sobre como identificar e evitar alimentos ricos em sódio, incluindo processados, embutidos e o sal de adição.
  • Restrição Hídrica: Diferentemente da restrição de sódio, a restrição de líquidos não é uma recomendação rotineira para todos os pacientes com ascite. Ela se torna necessária principalmente em casos de hiponatremia dilucional significativa, ou seja, quando os níveis de sódio no sangue caem para valores inferiores a 120-125 mEq/L. Nessas situações, a ingestão de líquidos pode ser limitada a 1 a 1,5 litros por dia.
  • Terapia Nutricional: É vital garantir um aporte nutricional adequado para prevenir ou tratar a desnutrição, comum em pacientes cirróticos. Dietas hipoproteicas não são rotineiramente recomendadas e podem, inclusive, agravar o quadro nutricional. O acompanhamento nutricional especializado é fundamental.

2. Terapia Diurética: Quando a Dieta Não é Suficiente

Quando a restrição de sódio isolada não controla a ascite, a introdução de diuréticos é o próximo passo. A combinação de restrição de sódio e diuréticos é eficaz em aproximadamente 90% dos casos.

  • Espironolactona: É o diurético de primeira escolha no tratamento da ascite cirrótica. Trata-se de um antagonista do receptor da aldosterona, um hormônio que está aumentado na cirrose (hiperaldosteronismo secundário) e promove a retenção de sódio e água. A espironolactona ajuda a reverter esse efeito.
    • Mecanismo: Bloqueia a ação da aldosterona nos rins, aumentando a excreção de sódio e água, enquanto poupa potássio. Esta característica de poupar potássio é particularmente benéfica, pois a hipocalemia (baixo potássio) pode precipitar encefalopatia hepática.
    • Dose: Inicia-se com 100 mg por dia, por via oral, podendo ser aumentada progressivamente a cada 3-5 dias, até uma dose máxima de 400 mg por dia, conforme a resposta e tolerância.
  • Furosemida: Um diurético de alça potente, que age aumentando a excreção de sódio, potássio e água pelos rins. Geralmente é associada à espironolactona quando esta, isoladamente, não é suficiente, ou para acelerar a resposta diurética e ajudar a manter os níveis de potássio normais.
    • Dose: Inicia-se com 20-40 mg por dia, por via oral, podendo ser aumentada até uma dose máxima de 160 mg por dia.
  • Terapia Combinada (Espironolactona + Furosemida): Muitos especialistas preferem iniciar a terapia combinada desde o início, especialmente em ascites mais volumosas ou em pacientes com descompensações prévias. É crucial manter uma proporção de dose de 100 mg de espironolactona para 40 mg de furosemida (ex: 100/40 mg, 200/80 mg, até 400/160 mg). Esta proporção ajuda a otimizar a natriurese (excreção de sódio) e a minimizar os distúrbios eletrolíticos, como a hipo ou hipercalemia.
  • Monitoramento e Ajustes: O tratamento diurético exige monitoramento regular do peso, da função renal (ureia e creatinina) e dos eletrólitos séricos (sódio e potássio). Os diuréticos devem ser ajustados ou temporariamente suspensos em situações como:
    • Encefalopatia hepática.
    • Aumento significativo da creatinina (geralmente > 2,0 mg/dL) ou desenvolvimento de insuficiência renal.
    • Hiponatremia grave (sódio < 120 mEq/L) ou hipercalemia sintomática.
  • Via de Administração: A via oral é preferível para a administração de diuréticos. O uso intravenoso de furosemida deve ser evitado, se possível, pois pode estar associado a um risco aumentado de disfunção renal em pacientes cirróticos.

3. O Papel da Albumina em Situações Específicas

A albumina é uma proteína importante produzida pelo fígado. Embora a hipoalbuminemia seja comum na cirrose, a infusão de albumina não é um tratamento de rotina para a ascite não complicada. Seu uso é reservado para cenários específicos:

  • Após Paracenteses de Grande Volume: Quando se retiram mais de 5 litros de líquido ascítico (paracentese terapêutica), a infusão de albumina (geralmente 6 a 8 gramas por litro de ascite removido acima dos 5 litros) é recomendada para prevenir a disfunção circulatória pós-paracentese, uma complicação que pode levar à piora da função renal.
  • Peritonite Bacteriana Espontânea (PBE): A administração de albumina em conjunto com antibióticos melhora a sobrevida e reduz o risco de síndrome hepatorrenal em pacientes com PBE.
  • Síndrome Hepatorrenal (SHR): A albumina é um componente chave no tratamento da SHR, geralmente em combinação com vasoconstritores.

Em resumo, o tratamento inicial da ascite cirrótica foca na restrição de sódio e no uso racional de diuréticos, principalmente espironolactona e furosemida, com monitoramento cuidadoso para otimizar a eficácia e minimizar os efeitos adversos. A albumina desempenha um papel valioso em complicações específicas, mas não como terapia de primeira linha para o controle do volume ascítico.

Quando o Tratamento Inicial Falha: Paracentese Terapêutica e Manejo da Ascite Refratária

Apesar da eficácia da restrição de sódio e do uso de diuréticos no manejo da ascite em muitos pacientes com cirrose hepática, uma parcela significativa pode não responder adequadamente ou desenvolver complicações que limitam essas terapias. Nesses cenários, intervenções mais diretas e, por vezes, invasivas, tornam-se necessárias para controlar o acúmulo de líquido e aliviar os sintomas.

Paracentese Terapêutica: Alívio Imediato para a Ascite Volumosa

A paracentese terapêutica, também conhecida como paracentese de alívio, é um procedimento fundamental quando o tratamento clínico inicial não é suficiente ou quando a ascite se torna volumosa e sintomática. Consiste na remoção de uma quantidade significativa de líquido ascítico da cavidade abdominal através de uma punção.

Indicações para a Paracentese Terapêutica:

  • Ascite tensa ou de grande volume: Quando o acúmulo de líquido causa desconforto respiratório, dor abdominal intensa ou saciedade precoce.
  • Ascite refratária: Como veremos adiante, é uma das principais ferramentas no manejo dessa condição.
  • Alívio sintomático: Mesmo em pacientes que aguardam outras terapias, a paracentese pode oferecer conforto imediato.
  • Pode ser considerada em pacientes com insuficiência renal associada à ascite, onde o manejo com diuréticos é mais complexo.

É crucial destacar que, em retiradas de grandes volumes de líquido ascítico (geralmente acima de 5 litros), a reposição de albumina intravenosa é recomendada (usualmente 6 a 8 gramas de albumina por litro de líquido ascítico removido acima dos 5 litros iniciais). Essa medida visa prevenir a disfunção circulatória pós-paracentese, uma complicação que pode agravar a hemodinâmica já comprometida do paciente cirrótico e precipitar a síndrome hepatorrenal.

Definindo a Ascite Refratária

A ascite refratária é uma complicação séria que ocorre em aproximadamente 5 a 10% dos pacientes com cirrose e ascite. Ela é formalmente definida por um dos seguintes critérios:

  1. Resistência aos diuréticos: Ausência de resposta ao tratamento com doses máximas de diuréticos (tipicamente 400 mg/dia de espironolactona e 160 mg/dia de furosemida) por pelo menos uma semana, associada à restrição de sódio na dieta (< 2g/dia).
  2. Intolerância aos diuréticos: Desenvolvimento de efeitos colaterais significativos (como encefalopatia hepática, insuficiência renal, hiponatremia severa ou hipercalemia) que impedem o uso das doses eficazes de diuréticos.

Antes de firmar o diagnóstico de ascite refratária, é essencial excluir a má adesão do paciente à dieta e à medicação, bem como investigar possíveis fatores precipitantes, como a progressão da doença hepática, o desenvolvimento de carcinoma hepatocelular (CHC) ou a trombose da veia porta.

Opções de Manejo para a Ascite Refratária

Uma vez estabelecido o diagnóstico de ascite refratária, o foco do tratamento se desloca para o controle sintomático e a melhoria da qualidade de vida, enquanto se consideram opções mais definitivas como o transplante hepático. As principais estratégias incluem:

  1. Paracenteses Terapêuticas de Repetição:

    • Para muitos pacientes, a realização de paracenteses de alívio em intervalos regulares (semanais, quinzenais ou conforme a necessidade) torna-se a base do tratamento.
    • Embora eficaz para o alívio dos sintomas, requer visitas frequentes ao hospital e está associada a riscos como infecção, sangramento e a já mencionada disfunção circulatória se a reposição de albumina não for adequada.
  2. Shunt Portossistêmico Intra-hepático Transjugular (TIPS):

    • O TIPS é um procedimento minimamente invasivo realizado por radiologia intervencionista. Consiste na criação de um canal artificial (stent) dentro do fígado, conectando diretamente uma veia porta (de alta pressão) a uma veia hepática (de baixa pressão).
    • Mecanismo de ação: Ao desviar parte do fluxo sanguíneo portal, o TIPS reduz a hipertensão portal, que é a principal causa da formação da ascite.
    • Indicações: É uma opção valiosa para pacientes com ascite refratária que são bons candidatos. Também pode ser indicado para hidrotórax hepático refratário (acúmulo de líquido pleural de origem ascítica).
    • Benefícios: Pode reduzir significativamente ou eliminar a necessidade de paracenteses de repetição e melhorar a qualidade de vida.
    • Riscos e Considerações:
      • Encefalopatia Hepática: O principal efeito adverso é o risco aumentado ou agravamento da encefalopatia hepática (ocorre em cerca de 30% dos casos), pois o sangue portal rico em toxinas (como amônia) é desviado do fígado diretamente para a circulação sistêmica.
      • Disfunção do Shunt: O stent pode estreitar ou ocluir com o tempo, necessitando de reintervenções.
      • Seleção de Pacientes: O TIPS é geralmente considerado para pacientes com função hepática relativamente preservada (Child-Pugh A ou B) e sem contraindicações significativas (como insuficiência cardíaca grave ou encefalopatia hepática grave preexistente).
    • O TIPS pode servir como uma ponte para o transplante hepático em candidatos elegíveis, controlando as complicações da hipertensão portal enquanto aguardam o procedimento.

O manejo da ascite que não responde ao tratamento inicial exige uma avaliação cuidadosa e individualizada. A escolha entre paracenteses de repetição e o TIPS dependerá das características clínicas do paciente, da gravidade da doença hepática, da disponibilidade de recursos e da experiência da equipe médica. Em todos os casos, a discussão sobre o transplante hepático deve ser considerada, pois representa a única cura para a cirrose e suas complicações.

Principais Complicações da Ascite na Cirrose e Como Gerenciá-las

A ascite, além de ser uma manifestação comum da cirrose hepática, pode levar a complicações graves que exigem atenção e manejo especializado. Conhecer essas complicações é fundamental para um cuidado eficaz e para melhorar a qualidade de vida dos pacientes.

1. Peritonite Bacteriana Espontânea (PBE)

A PBE é uma infecção bacteriana do líquido ascítico que ocorre sem uma fonte intra-abdominal óbvia de contaminação. É uma complicação grave e potencialmente fatal, especialmente em pacientes com cirrose e ascite.

  • Diagnóstico: O diagnóstico é feito pela análise do líquido ascítico, obtido por paracentese. A presença de contagem de polimorfonucleares (PMN) ≥ 250 células/mm³ é o principal critério diagnóstico e indica o início imediato do tratamento. A cultura do líquido ascítico, embora importante, pode ser negativa. Uma variante, a ascite neutrofílica, apresenta PMN ≥ 250/mm³ com cultura negativa, mas deve ser tratada da mesma forma.
  • Tratamento: O tratamento deve ser instituído prontamente com antibióticos de amplo espectro (ex: cefalosporinas de terceira geração). A infusão de albumina humana é crucial, administrada no primeiro e terceiro dia de tratamento, para reduzir o risco de desenvolvimento da síndrome hepatorrenal (SHR).
  • Profilaxia:
    • Primária: Indicada para pacientes com alto risco de desenvolver um primeiro episódio de PBE (ex: proteína total no líquido ascítico < 1,5 g/dL associada a disfunção renal ou hepática avançada).
    • Secundária: Indicada para todos os pacientes que já tiveram um episódio de PBE, para prevenir recorrências.

2. Síndrome Hepatorrenal (SHR)

A SHR é uma forma grave de insuficiência renal funcional que ocorre em pacientes com cirrose avançada, ascite e hipertensão portal, na ausência de outras causas identificáveis de doença renal.

  • Diagnóstico: É um diagnóstico de exclusão. Os passos iniciais incluem a suspensão de diuréticos e drogas nefrotóxicas, rastreamento de infecções e expansão volêmica com albumina.
  • Tratamento: Visa melhorar a hemodinâmica renal e sistêmica. As principais opções incluem a combinação de vasoconstritores (como a terlipressina) e albumina. Em casos selecionados, o TIPS pode ser considerado. O tratamento definitivo é o transplante hepático.

3. Hérnias Umbilicais e Outras Hérnias da Parede Abdominal

O aumento crônico da pressão intra-abdominal causado pela ascite predispõe ao desenvolvimento de hérnias, principalmente umbilicais e incisionais.

  • Riscos: Essas hérnias podem complicar com encarceramento, estrangulamento ou ruptura da pele sobre a hérnia, uma emergência médica.
  • Manejo:
    • O tratamento inicial deve focar no controle da ascite.
    • O reparo cirúrgico eletivo é geralmente indicado para hérnias sintomáticas ou com risco de complicações, após otimização clínica e controle da ascite, frequentemente com uso de malha sintética (tela).

4. Desnutrição Proteico-Calórica

A desnutrição é uma complicação frequente em pacientes com cirrose e ascite, causada por redução da ingestão alimentar, má absorção, aumento do gasto energético e alterações metabólicas.

  • Impacto: Agrava o prognóstico, aumenta a suscetibilidade a infecções, piora a função hepática e muscular (sarcopenia) e diminui a qualidade de vida.
  • Manejo: Avaliação nutricional especializada, com adequado aporte calórico e proteico, suplementação e, se necessário, terapia nutricional enteral ou parenteral.

5. Hidrotórax Hepático

O hidrotórax hepático é o acúmulo de líquido na cavidade pleural em pacientes com cirrose e hipertensão portal, na ausência de doença cardíaca ou pulmonar primária, mais comum no hemitórax direito.

  • Causa: Passagem de líquido ascítico do abdômen para o espaço pleural através de defeitos no diafragma.
  • Diagnóstico: Toracocentese geralmente revela um transudato, semelhante ao líquido ascítico não complicado.
  • Manejo: O tratamento primário visa controlar a ascite subjacente (restrição de sódio, diuréticos). Toracocenteses terapêuticas podem ser necessárias. Em casos refratários, o TIPS pode ser uma opção eficaz.

O manejo adequado da ascite e suas complicações é um pilar no tratamento da cirrose hepática, podendo prevenir desfechos graves e melhorar significativamente o bem-estar dos pacientes.

Convivendo com a Ascite na Cirrose: Prognóstico, Acompanhamento e Qualidade de Vida

A jornada de um paciente com cirrose hepática frequentemente encontra um ponto de inflexão com o surgimento da ascite. Este evento não é apenas um sintoma desconfortável, mas um marco importante que sinaliza a progressão da doença e impacta significativamente o prognóstico.

O Impacto da Ascite no Prognóstico da Cirrose

O desenvolvimento de ascite é um sinal de descompensação da doença e está associado a um prognóstico reservado. Estatisticamente, a sobrevida de pacientes com cirrose e ascite é de aproximadamente 85% em 1 ano, mas para aqueles com ascite refratária, essa taxa pode cair para cerca de 50% em 2 anos. A presença de ascite, com seus sintomas que impactam o conforto e as atividades diárias, é um indicador prognóstico relevante, mas outros fatores clínicos e laboratoriais são cruciais. Achados de pior prognóstico incluem:

  • Aumento dos níveis de creatinina sérica (risco de síndrome hepatorrenal).
  • Hipotensão arterial.
  • Redução do sódio na urina.
  • Hiponatremia.

Essa progressão reflete o desequilíbrio hemodinâmico e hidroeletrolítico subjacente, que contribui para a deterioração clínica.

Acompanhamento Médico: Uma Abordagem Multidisciplinar e Contínua

Um acompanhamento médico regular e multidisciplinar é imprescindível, visando:

  • Identificar e tratar a causa subjacente da cirrose: Mesmo em estágios com ascite, tratar a causa base (como hepatites virais ou alcoolismo) é vital para tentar frear a progressão. Em fases muito precoces de certas doenças metabólicas, antes do desenvolvimento de cirrose avançada, a intervenção pode ter um impacto maior na fibrose.
  • Rastrear e manejar complicações: Pacientes com cirrose e ascite têm risco aumentado de PBE e síndrome hepatorrenal. O rastreamento de varizes de esôfago com profilaxia para risco de sangramento também é fundamental.
  • Monitorar a resposta ao tratamento da ascite: Ajustes na terapia diurética, avaliação da necessidade de paracentese e monitoramento da função renal e eletrólitos.
  • Avaliar a progressão da cirrose: A cirrose avançada é uma das principais indicações para transplante hepático.

Outras manifestações a serem consideradas no manejo global incluem alterações no volume hepático, na homeostase da glicose (risco de hipoglicemia de jejum e hiperglicemia pós-prandial), e um risco aumentado de colelitíase. O manejo hemodinâmico é vital, especialmente em hemorragias digestivas.

Qualidade de Vida, Cuidados Paliativos e Perspectivas

A ascite pode impactar severamente a qualidade de vida. O manejo focado no alívio dos sintomas é prioritário. Em fases avançadas, a discussão sobre cuidados paliativos deve ser iniciada para otimizar o conforto e apoiar o paciente e família. As perspectivas no tratamento da ascite e cirrose continuam a evoluir, mas a base reside no diagnóstico precoce de complicações, acompanhamento rigoroso e uma abordagem que valorize tanto a sobrevida quanto a qualidade de vida.

Compreender a ascite na cirrose hepática é dominar um capítulo crucial da hepatologia. Desde os mecanismos fisiopatológicos que levam ao acúmulo de líquido, passando pelas ferramentas diagnósticas essenciais como a paracentese, até as estratégias terapêuticas que incluem manejo dietético, diuréticos, paracentese de alívio e TIPS, este guia buscou oferecer uma visão abrangente e atualizada. O manejo eficaz da ascite e suas complicações, como a PBE e a SHR, é fundamental não apenas para aliviar sintomas, mas para melhorar o prognóstico e a qualidade de vida dos pacientes, sempre considerando o transplante hepático como opção definitiva para a doença de base.

Agora que você explorou este tema a fundo, que tal testar seus conhecimentos? Confira nossas Questões Desafio preparadas especialmente sobre este assunto!