Lidar com um diagnóstico de câncer gástrico é uma jornada complexa, repleta de termos técnicos, decisões críticas e incertezas. Este guia foi elaborado por nossa equipe editorial para servir como um mapa claro e confiável, desmistificando as opções de tratamento disponíveis. Nosso objetivo é capacitar você, seja paciente, familiar ou estudante da área da saúde, a compreender o que significa cada etapa — do estadiamento preciso às diferentes modalidades de cirurgia e terapias complementares. Navegar por este cenário com conhecimento é o primeiro passo para tomar decisões informadas e enfrentar o tratamento com mais segurança e confiança.
O Cenário do Câncer Gástrico: Relevância e Primeiros Passos
Apesar de não figurar entre os tipos de câncer mais comentados na mídia, o câncer gástrico, também conhecido como câncer de estômago, representa um desafio significativo para a saúde pública. Segundo estimativas do Instituto Nacional de Câncer (INCA) para o triênio 2023-2025, são esperados cerca de 21.480 novos casos por ano no Brasil, posicionando-o como:
- O quarto tipo de câncer mais comum em homens.
- O sexto tipo mais comum em mulheres (excluindo os casos de câncer de pele não melanoma).
O perfil mais afetado costuma ser de homens com mais de 60 anos, e cerca de 95% dos tumores são classificados como adenocarcinoma gástrico. A boa notícia é que sua incidência vem apresentando um declínio gradual, atribuído principalmente à maior erradicação da bactéria Helicobacter pylori e à melhoria nos hábitos de vida. Ainda assim, a mortalidade permanece considerável, reforçando a necessidade de um planejamento terapêutico rigoroso.
A Importância Crucial do Estadiamento
Confirmado o diagnóstico, o passo seguinte é o estadiamento, um processo meticuloso para determinar a extensão exata do tumor. Essa informação é a bússola que guiará todas as decisões terapêuticas, definindo se a doença está localizada, se invadiu estruturas vizinhas ou se já se espalhou (metástases).
Inicialmente, exames como tomografia computadorizada e PET-scan oferecem uma avaliação geral. No entanto, para detectar micrometástases não visíveis nesses exames, procedimentos mais específicos podem ser necessários:
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Laparoscopia Diagnóstica: Um procedimento minimamente invasivo onde uma câmera é inserida no abdômen para inspecionar visualmente o peritônio e os órgãos em busca de metástases ocultas.
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Lavado Peritoneal: Realizado durante a laparoscopia, consiste em "lavar" a cavidade abdominal com solução salina e analisar o líquido. A presença de células cancerígenas indica que a doença se espalhou pelo peritônio (carcinomatose peritoneal), um fator que muda radicalmente a estratégia de tratamento e, muitas vezes, contraindica uma cirurgia curativa imediata.
Este estadiamento cuidadoso é a base fundamental sobre a qual se constrói um plano de tratamento individualizado e com maiores chances de sucesso.
Definindo a Estratégia: Abordagens Terapêuticas e Critérios de Seleção
O tratamento do câncer gástrico é uma jornada altamente personalizada, fruto de uma avaliação multidisciplinar que define se o objetivo é curativo ou paliativo. A seguir, detalhamos as principais linhas de tratamento.
1. Tratamento Endoscópico: Uma Opção Curativa para Casos Precoces
Para um grupo seleto de pacientes com câncer gástrico precoce (tumor restrito às camadas mais superficiais do estômago), a remoção da lesão pode ser feita via endoscopia, com técnicas como a Ressecção Mucosa Endoscópica (EMR) ou a Dissecção Submucosa Endoscópica (ESD). Essa abordagem preserva o órgão e oferece cura, mas a indicação é extremamente criteriosa, reservada para casos com risco praticamente nulo de metástase linfonodal.
2. Tratamento Cirúrgico: O Pilar para a Doença Localizada
Para tumores que invadem camadas mais profundas, mas ainda não se espalharam, a cirurgia com intenção curativa é o tratamento padrão. O procedimento, chamado gastrectomia, consiste na remoção de parte ou de todo o estômago, sempre associada à linfadenectomia (remoção dos gânglios linfáticos próximos) para garantir a remoção completa do tumor com margens de segurança.
3. Tratamento Sistêmico: Combatendo a Doença em Múltiplas Frentes
A terapia sistêmica (quimioterapia, terapia-alvo, imunoterapia) pode ser usada em diferentes momentos para potencializar os resultados:
- Neoadjuvante: Antes da cirurgia, para reduzir o tumor.
- Adjuvante: Após a cirurgia, para eliminar células remanescentes e diminuir o risco de recidiva.
- Paliativa: Para doença avançada, visando controlar sintomas e melhorar a qualidade de vida.
Análise da Ressecabilidade: Quando a Cirurgia Curativa é Contraindicada?
Um ponto crítico é avaliar a ressecabilidade do tumor. A cirurgia com intenção de cura é contraindicada principalmente em duas situações:
- Presença de Metástases à Distância (M1): Se o câncer já se espalhou para órgãos como fígado ou pulmões.
- Invasão de Estruturas Irressecáveis: Quando o tumor invade estruturas vitais adjacentes, como grandes vasos sanguíneos.
Nesses casos, o tratamento passa a ter um foco paliativo.
Tratamento Curativo do Câncer Gástrico Precoce: O Papel da Ressecção Endoscópica
Nem todo diagnóstico de câncer gástrico significa uma grande cirurgia. Para tumores em estágio muito inicial, a ressecção endoscópica é uma alternativa revolucionária que remove a lesão através de um endoscópio, sem cortes externos. As técnicas principais, EMR e ESD, oferecem cura completa preservando o órgão, mas são restritas a casos de câncer gástrico precoce com baixíssimo risco de metástase.
Quem são os candidatos ideais? Os Critérios para a Cura Endoscópica
A elegibilidade para a ressecção endoscópica exige que o tumor atenda a critérios rigorosos, avaliados com auxílio da ecoendoscopia (ultrassom endoscópico). Os critérios clássicos incluem:
- Profundidade do Tumor: Restrito à camada mucosa (T1a).
- Tamanho da Lesão: Inferior ou igual a 2 cm.
- Tipo Histológico: Adenocarcinoma bem diferenciado.
- Ausência de Ulceração: A lesão não deve ser ulcerada.
- Ausência de Invasão Linfovascular: Sem sinais de invasão de vasos sanguíneos ou linfáticos.
- Ausência de Linfonodos Suspeitos (N0): Exames não devem mostrar linfonodos comprometidos.
Em centros de alta especialização, critérios expandidos podem ser aplicados. A confirmação da cura ocorre após a análise da peça removida: se a remoção foi completa e os critérios de baixo risco foram atendidos, o paciente é considerado curado, evitando uma gastrectomia.
Gastrectomia: Tipos de Cirurgia para Remoção do Tumor e Suas Indicações
A gastrectomia é o pilar do tratamento curativo, e a escolha do tipo de cirurgia depende da localização e extensão do tumor. O objetivo é sempre a remoção completa do tumor com margens de segurança e dos linfonodos regionais.
Tipos de Gastrectomia
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Gastrectomia Total:
- Descrição: Remoção completa do estômago.
- Indicações: Tumores na porção proximal (fundo, cárdia ou corpo proximal). Necessária para garantir margens cirúrgicas livres de doença.
- Reconstrução: O trânsito digestivo é refeito conectando o esôfago ao intestino delgado, preferencialmente com a técnica de esofagojejunostomia em Y de Roux para minimizar o refluxo.
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Gastrectomia Subtotal (ou Distal):
- Descrição: Remoção da porção inferior do estômago (geralmente dois terços distais).
- Indicações: Tumores localizados exclusivamente na porção distal.
- Margens Cirúrgicas: A margem proximal deve ter pelo menos 6 cm de distância do tumor, pois o câncer gástrico pode se espalhar lateralmente sob a mucosa.
- Reconstrução: O estômago remanescente é conectado ao jejuno, também preferencialmente com a reconstrução em Y de Roux.
A Importância Crucial da Linfadenectomia
A remoção dos gânglios linfáticos regionais (linfadenectomia) é um passo obrigatório. O padrão-ouro é a linfadenectomia a D2, que remove sistematicamente as cadeias de linfonodos perigástricos (D1) e ao longo dos principais vasos que nutrem o estômago. Este procedimento não só aumenta as chances de cura ao remover micrometástases, mas também fornece informações essenciais para o estadiamento e para guiar terapias futuras.
Potencializando Resultados: Terapias Neoadjuvantes e Adjuvantes
A oncologia moderna entende que os melhores resultados vêm de uma estratégia de tratamento multimodal, combinando a cirurgia com terapias sistêmicas para maximizar as chances de cura.
Terapia Neoadjuvante: Preparando o Terreno para a Cirurgia
A terapia neoadjuvante, geralmente com antineoplásicos (quimioterapia), é realizada antes da cirurgia para otimizar o procedimento. Seus objetivos são:
- Redução do Tumor (Citorredução): Diminuir o tamanho do tumor, facilitando uma ressecção completa e segura.
- Aumento das Taxas de Ressecção Completa: Aumentar a probabilidade de remover todo o tecido doente com margens livres.
- Tratamento Precoce de Micrometástases: Atacar células cancerígenas invisíveis que já possam ter se espalhado pela corrente sanguínea.
É especialmente recomendada para tumores localmente avançados (T3/T4) ou com linfonodos visivelmente acometidos.
Terapia Adjuvante: Consolidando a Vitória Após a Cirurgia
A terapia adjuvante é administrada após a cirurgia e funciona como uma "terapia de segurança". Seu propósito é eliminar células cancerígenas microscópicas que possam ter permanecido. É indicada para pacientes operados sem tratamento prévio e cujo laudo da cirurgia revela fatores de alto risco para recidiva, como:
- Linfonodos positivos (N+).
- Tumor localmente avançado (T3-4N0).
As opções incluem quimioterapia isolada ou combinada com radioterapia, especialmente se a linfadenectomia não foi considerada adequada.
Câncer Gástrico Avançado: Indicações e Opções de Cirurgia Paliativa
Quando o câncer gástrico é diagnosticado em estágio avançado (irressecável ou com metástases), o objetivo do tratamento muda da cura para a paliação: controle de sintomas e melhoria da qualidade de vida. A quimioterapia paliativa é a primeira linha, mas a cirurgia assume um papel fundamental quando surgem complicações locais graves.
Indicações para a Cirurgia Paliativa
A intervenção cirúrgica é reservada para situações em que os benefícios superam os riscos, como:
- Obstrução do trato digestivo: Quando o tumor impede a passagem de alimentos, causando vômitos e desnutrição.
- Sangramento tumoral incontrolável: Quando a hemorragia não pode ser controlada por métodos endoscópicos.
- Perfuração: Uma emergência cirúrgica causada pelo rompimento da parede do estômago.
Principais Procedimentos Cirúrgicos Paliativos
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Gastrectomia Paliativa: A remoção de parte ou todo o estômago pode ser realizada para controlar sangramento ou obstrução, mesmo sem curar o câncer, melhorando drasticamente a qualidade de vida.
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Cirurgias de Derivação (Bypass Gástrico): Se o tumor obstrutivo for irressecável, uma gastrojejunostomia cria um "desvio" para o alimento, conectando o estômago diretamente ao intestino.
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Gastrostomia: Cria um acesso direto ao estômago através da parede abdominal para uma sonda, seja para fins nutricionais ou para descomprimir o estômago em casos de obstrução intratável.
A decisão por qualquer procedimento paliativo é sempre individualizada, discutida por uma equipe multidisciplinar e alinhada com os desejos do paciente.
Vida Após a Gastrectomia: Seguimento e Desafios Pós-operatórios
A jornada do paciente não termina na cirurgia. O período pós-operatório é crucial, focado na vigilância médica e em adaptações no estilo de vida.
A Importância do Seguimento Clínico
O acompanhamento rigoroso visa detectar precocemente qualquer sinal de recidiva, mais provável nos primeiros 3 anos. O protocolo inclui exames periódicos como Endoscopia Digestiva Alta (EDA) (para pacientes com gastrectomia subtotal) e Tomografia Computadorizada (TC) de abdome e pelve.
Cuidados Essenciais no Pós-operatório Imediato
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Alimentação Precoce: Iniciar a alimentação nas primeiras 24 horas após a cirurgia é seguro, ajuda a reduzir a paralisia temporária do intestino (íleo paralítico) e acelera a recuperação.
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Tratamento Anticoagulante: Para prevenir trombose venosa, a anticoagulação é iniciada assim que o sangramento cirúrgico é controlado e mantida por um período mínimo de 3 meses.
Desafios das Abordagens Modernas: O Caso da Laparoscopia
A cirurgia laparoscópica, apesar de oferecer recuperação mais rápida, impõe desafios únicos à equipe cirúrgica, como visão bidimensional, restrição de movimentos e dificuldade em estimar sangramentos. Superá-los exige treinamento especializado e tecnologia avançada, mas os benefícios para o paciente são significativos.
Compreender as nuances do tratamento do câncer gástrico é fundamental para uma jornada terapêutica mais consciente e colaborativa. Desde as abordagens minimamente invasivas para tumores precoces até as complexas cirurgias combinadas com quimioterapia, cada passo é cuidadosamente planejado com base em evidências científicas e nas características individuais de cada paciente. O conhecimento sobre os objetivos de cada terapia — seja curativa ou paliativa — transforma a incerteza em compreensão, fortalecendo a aliança entre a equipe de saúde, o paciente e sua família.
A jornada do conhecimento é contínua. Para solidificar o que você aprendeu neste guia, que tal um desafio? Teste sua compreensão com as Questões Desafio que preparamos especialmente sobre este assunto