A cardiotocografia (CTG) é mais do que um simples exame; é uma linguagem. Em suas linhas e picos, reside uma conversa em tempo real entre o feto e o mundo exterior, uma narrativa que pode revelar conforto, estresse ou um pedido urgente de ajuda. Para o profissional de saúde na linha de frente, decifrar essa linguagem não é apenas uma habilidade técnica, mas uma responsabilidade crítica que pode definir desfechos. Este guia foi elaborado para ir além da memorização de padrões, capacitando você a interpretar a CTG com a confiança e a acuidade que a prática clínica exige, transformando dados em decisões que salvam vidas.
Os Pilares da Cardiotocografia: Linha de Base e Variabilidade da FCF
A cardiotocografia (CTG) é uma ferramenta indispensável na vigilância do bem-estar fetal, fornecendo uma janela para a resposta do feto ao ambiente intrauterino. Para interpretar corretamente um traçado, é fundamental dominar seus dois pilares: a Linha de Base e a Variabilidade da Frequência Cardíaca Fetal (FCF).
1. Linha de Base da Frequência Cardíaca Fetal (FCF)
A linha de base é o alicerce da nossa análise. Ela representa a frequência cardíaca média do feto, avaliada em um segmento de 10 minutos, excluindo eventos periódicos como acelerações e desacelerações. Este valor é um indicador fundamental da condição hemodinâmica fetal.
Os valores de referência são bem estabelecidos:
- Normal: A linha de base situa-se entre 110 e 160 batimentos por minuto (bpm).
- Taquicardia Fetal: Linha de base consistentemente acima de 160 bpm.
- Bradicardia Fetal: Linha de base persistentemente abaixo de 110 bpm.
Uma linha de base dentro da normalidade é o primeiro sinal de que o feto está, a princípio, em boas condições.
2. Variabilidade da FCF: O Sinal Vital do Cérebro Fetal
Se a linha de base é o alicerce, a variabilidade é o indicador mais sensível da integridade do sistema nervoso central (SNC) fetal. Ela consiste nas flutuações irregulares, batimento a batimento, que ocorrem em torno da linha de base, refletindo o equilíbrio saudável entre os sistemas nervosos simpático e parassimpático.
A variabilidade é classificada pela amplitude das flutuações:
- Moderada (Normal): Amplitude entre 6 e 25 bpm. Este é o padrão ouro, o principal indicador de ausência de hipóxia e acidose fetal.
- Mínima: Amplitude menor que 6 bpm.
- Ausente: Flutuações praticamente indetectáveis.
- Aumentada (Saltatória): Amplitude maior que 25 bpm.
A redução da variabilidade (mínima ou ausente) é um sinal de alerta, pois pode indicar hipóxia fetal. No entanto, é crucial lembrar que outras condições podem causar essa diminuição, como ciclos de sono fetal, prematuridade ou uso de medicamentos depressores do SNC pela mãe (ex: opioides, magnésio), exigindo uma avaliação clínica completa.
Acelerações e Desacelerações Precoces (DIP I): Sinais de Bem-Estar e Resposta Fisiológica
Com a linha de base e a variabilidade estabelecidas, passamos a analisar os eventos periódicos. Entre eles, as acelerações transitórias e as desacelerações precoces (DIP I) representam, na maioria das vezes, a normalidade e a reatividade fetal.
Acelerações Transitórias: A Assinatura do Bem-Estar Fetal
As acelerações transitórias são, talvez, o sinal mais tranquilizador em um traçado. Elas representam aumentos abruptos e temporários da FCF, indicando um sistema nervoso autônomo intacto e a ausência de hipóxia. Pense nelas como a "assinatura" de um feto saudável.
A definição técnica de uma aceleração varia com a idade gestacional:
- Após 32 semanas: Aumento de no mínimo 15 bpm acima da linha de base, com duração de pelo menos 15 segundos.
- Antes de 32 semanas: Aumento de 10 bpm por pelo menos 10 segundos.
A presença de duas ou mais acelerações em 20 minutos é um forte indicador de bem-estar. A ausência temporária pode ocorrer durante o sono fetal e não é, por si só, um sinal de alarme.
Desacelerações Precoces (DIP I): Uma Resposta Reflexa e Benigna
As desacelerações precoces (DIP I) são quedas transitórias na FCF, mas de natureza fisiológica e benigna. Sua característica definidora é a sincronia perfeita com a contração uterina: a desaceleração espelha a curva da contração no traçado.
A causa da DIP I é a compressão do polo cefálico fetal durante a contração, que desencadeia uma resposta reflexa vasovagal mediada pelo nervo vago. Por ser um reflexo e não uma resposta à falta de oxigênio, a DIP I não está associada à hipóxia ou acidemia fetal. Sua identificação isolada não exige intervenção, apenas a continuidade da vigilância.
Desacelerações Variáveis (DIP III): O Alerta da Compressão Umbilical
Enquanto as acelerações e desacelerações precoces são majoritariamente tranquilizadoras, as desacelerações variáveis (DIP III) introduzem um elemento de imprevisibilidade. São os eventos mais comuns na CTG e seu nome deriva da morfologia e duração inconstantes.
A principal característica de uma desaceleração variável é sua queda abrupta: a FCF cai do início ao seu ponto mais baixo (nadir) em menos de 30 segundos, criando um padrão em "V", "U" ou "W". A causa é quase sempre a compressão do cordão umbilical, que oclui transitoriamente os vasos e desencadeia uma resposta reflexa.
Classificação: Não Complicadas vs. Complicadas
A interpretação clínica exige a diferenciação entre dois tipos:
- Não Complicadas (Típicas): Apresentam retorno rápido à linha de base, variabilidade preservada e, frequentemente, pequenas acelerações pré e pós-evento (ombros), que são um sinal de bom prognóstico.
- Complicadas (Atípicas): Indicam maior risco de hipóxia. Os critérios incluem: queda da FCF para abaixo de 70 bpm, duração superior a 60 segundos, perda da variabilidade durante o evento, retorno lento à linha de base e ausência dos ombros.
A identificação de desacelerações variáveis recorrentes ou complicadas exige ação. A primeira medida é a mudança de decúbito materno para aliviar a compressão. Se o padrão persistir, sinaliza um comprometimento fetal que pode exigir uma intervenção mais assertiva, como a cesárea de urgência.
Desacelerações Tardias (DIP II): O Sinal Crítico de Insuficiência Placentária
Se as desacelerações variáveis são um alerta sobre o cordão umbilical, as desacelerações tardias (DIP II) apontam para um problema ainda mais crítico: a insuficiência uteroplacentária. Este achado é considerado o sinal mais ominoso de sofrimento fetal.
Como Identificar uma Desaceleração Tardia?
A DIP II possui características específicas:
- Início Atrasado: A queda na FCF começa após o pico da contração uterina. Essa defasagem ("decalagem") é sua marca registrada.
- Formato Gradual e Simétrico: A queda e o retorno da FCF são suaves, criando uma imagem em "U" deslocada no tempo em relação à contração.
O mecanismo por trás da DIP II é a chave para sua gravidade. Em um cenário de insuficiência placentária, a reserva de oxigênio do feto é baixa. A redução do fluxo sanguíneo durante a contração causa hipóxia, estimulando quimiorreceptores fetais. Isso desencadeia uma resposta vagal e depressão miocárdica, resultando na queda da FCF. Como essa resposta metabólica leva tempo, a desaceleração ocorre tardiamente.
A presença de desacelerações tardias recorrentes é um forte indicador de que o feto está lutando para manter sua oxigenação, elevando o risco de acidose fetal. Quando associadas a uma variabilidade mínima ou ausente, o risco de acidose grave é extremamente elevado, indicando que os mecanismos compensatórios do feto estão se esgotando e configurando uma emergência obstétrica.
Identificando Padrões de Alto Risco: O Padrão Sinusoidal
No espectro dos padrões de risco, há um traçado que se destaca como o mais ominoso: o padrão sinusoidal. Sua presença é um sinal de alerta máximo, indicando um feto em estado de grave comprometimento e exigindo uma conduta de emergência.
O padrão sinusoidal é inconfundível, apresentando-se como uma onda suave, regular e ondulatória, com as seguintes características:
- Aparência: Oscilações regulares e fixas, "em forma de sino".
- Amplitude: Variações de 5 a 15 bpm.
- Frequência: De 2 a 5 ciclos por minuto.
- Comportamento: Ausência total de variabilidade batimento a batimento e de acelerações.
Classificado como Categoria 3, o padrão sinusoidal reflete uma disfunção severa do sistema nervoso autônomo e está fortemente associado a um prognóstico perinatal reservado. As causas mais comuns incluem anemia fetal grave (ex: doença hemolítica, hemorragia feto-materna) e hipóxia fetal grave. A identificação deste padrão é uma emergência obstétrica que demanda avaliação imediata e, na maioria das vezes, a interrupção da gestação pela via mais rápida possível.
Dominar a cardiotocografia é entender a narrativa da adaptação fetal. Começamos com os sinais de vitalidade — uma linha de base estável e, crucialmente, uma variabilidade moderada. A partir daí, aprendemos a reconhecer as respostas fisiológicas, como as acelerações reativas e as desacelerações precoces benignas. Por fim, identificamos os sinais de alerta que exigem nossa intervenção: as desacelerações variáveis, que nos falam sobre o cordão umbilical, as tardias, que gritam sobre a insuficiência placentária, e o padrão sinusoidal, um sinal de alarme extremo. Cada padrão é um capítulo na história do bem-estar fetal, e a capacidade de ler essa história corretamente é o que define uma assistência perinatal de excelência.
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