Diagnosticar um adenocarcinoma gástrico é apenas o ponto de partida. Para traçar um plano terapêutico eficaz e prever o prognóstico de um paciente, é preciso ir além do diagnóstico e entender a personalidade do tumor. É aqui que entram duas classificações clássicas e indispensáveis: Lauren e Borrmann. Este guia prático foi elaborado para desmistificar esses dois sistemas, mostrando como a visão macroscópica de um e a análise microscópica do outro se complementam para formar um panorama completo da doença, orientando as decisões clínicas mais críticas.
A Importância de Classificar o Câncer Gástrico
Para traçar um plano terapêutico eficaz e definir o prognóstico do paciente com adenocarcinoma gástrico, é fundamental compreender as características específicas de cada tumor. Afinal, nem todos os cânceres gástricos se comportam da mesma maneira. Alguns crescem de forma localizada, enquanto outros se espalham agressivamente. A classificação tumoral funciona como um mapa detalhado que guia as decisões clínicas, permitindo prever o comportamento biológico da doença, avaliar sua agressividade e, consequentemente, personalizar o tratamento.
Nesse cenário, duas classificações, embora clássicas, permanecem como pilares na avaliação do câncer gástrico: a de Borrmann, focada na análise macroscópica (a aparência da lesão), e a de Lauren, baseada na análise microscópica (a arquitetura celular). Elas não são excludentes; pelo contrário, são complementares. Enquanto Borrmann nos dá uma visão da "geografia" do tumor, Lauren revela sua "biologia" em nível celular. A combinação dessas informações é crucial para o estadiamento e a definição da melhor estratégia terapêutica.
Classificação de Lauren: A Análise Histológica
Proposta em 1965 pelo patologista finlandês Pekka Lauren, esta classificação é um sistema de divisão histopatológica, ou seja, baseia-se nas características microscópicas das células tumorais e na sua arquitetura tecidual. Lauren categorizou os adenocarcinomas gástricos em dois subtipos principais, cada um com um perfil biológico, clínico e epidemiológico distinto: o tipo intestinal e o tipo difuso.
O Tipo Intestinal: A Consequência de um Ambiente Agressor
O tipo intestinal é o mais comum e está fortemente associado a fatores ambientais e a um processo inflamatório crônico. Ele geralmente se desenvolve a partir de lesões precursoras bem definidas, seguindo a sequência de eventos conhecida como cascata de Pelayo-Correa (gastrite crônica por H. pylori → atrofia → metaplasia intestinal → displasia → adenocarcinoma).
- Histologia: É um tumor bem diferenciado, caracterizado pela formação de estruturas glandulares que se assemelham às do intestino. As células tumorais são coesas, mantendo-se unidas.
- Epidemiologia: Mais prevalente em homens idosos (geralmente acima de 60 anos) e em áreas com alta incidência de infecção por H. pylori.
- Disseminação: A metástase ocorre predominantemente por via hematogênica (através da corrente sanguínea).
- Prognóstico: Possui um prognóstico relativamente melhor por ser mais localizado e bem diferenciado.
O Tipo Difuso: A Expressão da Agressividade Genética
Em contraste, o tipo difuso é uma entidade biológica mais agressiva, com um forte componente genético e menos ligada a fatores ambientais. Ele não costuma surgir de lesões precursoras claras.
- Histologia: É um tumor pouco diferenciado ou indiferenciado. Sua marca registrada é a baixa adesividade celular, o que permite um padrão de crescimento infiltrativo, onde as células se espalham isoladamente pelas camadas da parede gástrica. A presença de células em anel de sinete (signet ring cells) é um achado clássico.
- Epidemiologia: Mais comum em pacientes jovens (frequentemente abaixo de 50 anos) e com leve predileção pelo sexo feminino.
- Genética: Frequentemente associado a mutações no gene CDH1, que codifica a E-caderina, uma proteína de adesão celular. A perda de sua função explica o padrão altamente infiltrativo do tumor.
- Disseminação: A metástase ocorre principalmente por via linfática e por contiguidade (invasão de órgãos vizinhos).
- Prognóstico: É um tumor de pior prognóstico, com um curso de doença mais rápido.
| Característica | Tipo Intestinal | Tipo Difuso | | :--- | :--- | :--- | | Diferenciação | Bem diferenciado (forma glândulas) | Pouco diferenciado (infiltrativo) | | Histologia Típica | Estruturas glandulares | Células em anel de sinete | | Perfil do Paciente | Homens, > 60 anos | Mulheres, < 50 anos | | Fatores de Risco | H. pylori, gastrite atrófica, metaplasia | Fatores genéticos (mutação CDH1) | | Disseminação | Hematogênica | Linfática e por contiguidade | | Prognóstico | Melhor | Pior |
Classificação de Borrmann: A Avaliação Macroscópica
Desenvolvida em 1926, a Classificação de Borrmann descreve a aparência de tumores gástricos localmente avançados durante a endoscopia. Ela se baseia puramente na morfologia do tumor, categorizando-o em quatro tipos principais:
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Borrmann Tipo I: Polipoide ou Vegetante
- Descrição: Lesão bem delimitada, em formato de pólipo, que cresce para dentro da cavidade gástrica. Por ser bem circunscrita, geralmente está associada a um prognóstico mais favorável.
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Borrmann Tipo II: Ulcerado
- Descrição: Lesão em forma de úlcera com bordas elevadas e bem definidas. A parede gástrica ao redor mantém sua flexibilidade.
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Borrmann Tipo III: Ulceroinfiltrativo
- Descrição: O tipo mais comum. Combina uma úlcera central com bordas irregulares e mal definidas que se fundem com a mucosa adjacente, que se torna endurecida e infiltrada. Esse padrão invasivo está associado a um prognóstico pior que os tipos I e II.
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Borrmann Tipo IV: Infiltrativo Difuso (Linite Plástica)
- Descrição: O tipo de pior prognóstico. As células cancerígenas se espalham difusamente por todas as camadas da parede gástrica, resultando em um espessamento e enrijecimento extenso do estômago, que adquire um aspecto de "garrafa de couro" (linitis plastica). Os limites do tumor são impossíveis de definir macroscopicamente.
Aplicação Clínica Conjunta: Como Lauren e Borrmann Orientam o Tratamento
A verdadeira força dessas classificações reside na sua sinergia diagnóstica. A combinação da "fotografia panorâmica" de Borrmann com o "zoom celular" de Lauren permite à equipe oncológica traçar a estratégia mais eficaz.
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Cenário 1 (Prognóstico mais favorável): Um paciente com um tumor Borrmann II (ulcerado) cuja biópsia revela um adenocarcinoma Lauren Intestinal. Essa combinação sugere um tumor que cresce de forma mais localizada e coesa. A cirurgia pode ser planejada com margens de segurança mais previsíveis.
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Cenário 2 (Prognóstico mais desafiador): Um paciente com um tumor Borrmann IV (linite plástica) que, na histologia, é Lauren Difuso. Esta é uma combinação de alto alerta. A aparência macroscópica já indica uma doença extensa, e a análise microscópica confirma um padrão de crescimento infiltrativo e agressivo. Isso implica a necessidade de uma ressecção cirúrgica muito mais ampla (gastrectomia total) e, muitas vezes, justifica o início de quimioterapia sistêmica para combater a doença em nível global.
Em resumo, a integração de Borrmann e Lauren transforma a avaliação do câncer gástrico de uma simples descrição para um poderoso instrumento preditivo, pavimentando o caminho para um tratamento oncológico mais personalizado e eficaz.
Em resumo, as classificações de Lauren e Borrmann não são meros rótulos acadêmicos; são ferramentas prognósticas e terapêuticas essenciais. Enquanto Borrmann nos dá a "geografia" da lesão visível, Lauren revela a "biologia" celular que dita sua agressividade. A verdadeira maestria clínica reside em integrar essas duas perspectivas, transformando uma avaliação diagnóstica em uma estratégia de tratamento personalizada e eficaz.
Agora que você explorou a fundo a importância e as nuances dessas classificações, que tal colocar seu conhecimento à prova? Desafie-se com as questões que preparamos sobre o tema e consolide seu aprendizado