No complexo universo da saúde pública brasileira, dois termos são frequentemente evocados, mas nem sempre plenamente compreendidos: igualdade e equidade. Embora ambos sejam cruciais para a missão do Sistema Único de Saúde (SUS), entender suas nuances é vital para qualquer profissional, gestor ou cidadão que aspire a um sistema de saúde verdadeiramente justo e acessível. Este artigo se propõe a desmistificar esses conceitos, explorando não apenas suas definições, mas também como se manifestam na prática e por que são indispensáveis para combater as disparidades e promover a saúde para todos no Brasil.
Desvendando os Pilares do SUS: O Que São Igualdade e Equidade?
Para compreendermos a grandiosidade e os desafios do Sistema Único de Saúde (SUS), é crucial desvendarmos dois de seus princípios doutrinários mais importantes: a igualdade e a equidade. Embora frequentemente confundidos, esses conceitos possuem significados distintos e papéis complementares na busca por uma saúde verdadeiramente justa e acessível para todos os brasileiros.
O princípio da igualdade no SUS está intrinsecamente ligado ao conceito de isonomia, previsto em nossa Constituição Federal. Ele estabelece que todos os cidadãos devem ser tratados sem qualquer tipo de discriminação – seja por gênero, raça, condição social, orientação sexual ou local de moradia. Na prática, isso significa que todo indivíduo tem o direito de acessar os serviços de saúde e receber tratamento de forma igualitária. A Atenção Primária à Saúde (APS), por exemplo, reflete esse princípio ao oferecer cuidados à população sem distinção. A igualdade, portanto, garante um ponto de partida uniforme: os mesmos direitos e oportunidades de acesso para todos.
Por outro lado, a equidade reconhece uma realidade fundamental: as pessoas são diferentes e possuem necessidades de saúde distintas. Ela defende tratar desigualmente os desiguais, na medida de suas desigualdades, adaptando o cuidado e as oportunidades às necessidades específicas de cada indivíduo ou grupo populacional. O objetivo não é oferecer o mesmo para todos, mas sim fornecer o necessário para cada um, visando alcançar resultados justos e equiparáveis. Em essência, a equidade busca corrigir desequilíbrios, investindo mais onde a carência é maior.
Uma maneira didática de visualizar a diferença é através da metáfora de três pessoas de alturas diferentes tentando assistir a um jogo por cima de um muro:
- Igualdade: Todas recebem um caixote do mesmo tamanho. A pessoa mais alta vê bem, a mediana talvez com dificuldade, e a mais baixa continua sem ver nada. Apesar do tratamento "igual", o resultado não foi justo.
- Equidade: Os suportes são ajustados. A pessoa mais alta talvez não precise de caixote, a mediana recebe um adequado, e a mais baixa um caixote maior. O objetivo é que todas consigam assistir ao jogo.
No SUS, a equidade se preocupa em fornecer os apoios necessários para que cada um possa, de fato, alcançar o melhor estado de saúde possível. É importante também não confundir equidade com outros princípios do SUS, embora se complementem. A universalidade garante saúde como direito de todos; a integralidade refere-se à oferta completa de ações e serviços; o controle social é a participação da comunidade na gestão; e a regionalização/descentralização tratam da organização territorial. A equidade permeia e qualifica a aplicação desses outros princípios, focando na justa distribuição de recursos e cuidados conforme as necessidades.
A Natureza da Equidade no SUS: Um Princípio Doutrinário e Ético
No coração do Sistema Único de Saúde (SUS), a equidade pulsa como um de seus mais importantes princípios doutrinários e éticos. Diferentemente da igualdade, que preconiza tratar a todos da mesma forma, a equidade parte do reconhecimento das diversidades humanas e das distintas necessidades de saúde.
Embora sua menção explícita não constasse originalmente na Constituição Federal de 1988 nem na Lei Orgânica da Saúde (Lei nº 8.080/90), a importância da equidade foi progressivamente reconhecida, consolidando-se como um princípio doutrinário fundamental e um imperativo ético. Sua natureza é essencialmente filosófica e moral, guiando o sistema para atuar ativamente na correção das injustiças e distinguindo-se dos princípios organizativos, que se referem mais à estrutura e funcionamento.
A equidade no SUS opera em uma dupla dimensão: como princípio orientador das decisões sobre alocação de recursos e organização dos serviços, e como objetivo a ser constantemente perseguido na redução das desigualdades em saúde. Está intrinsecamente ligada ao conceito de justiça distributiva, que defende a alocação de recursos de acordo com as necessidades, a garantia de acesso equitativo e a atuação imparcial dos profissionais. Portanto, exige uma análise crítica contínua das necessidades da população, identificando grupos com maiores barreiras e direcionando esforços para superá-las.
Articulação Essencial: Universalidade e Equidade no Acesso à Saúde
No cerne do SUS, dois princípios se entrelaçam para tecer a malha de um atendimento justo e abrangente: a universalidade e a equidade. Compreender sua articulação é fundamental.
O princípio da universalidade estabelece a saúde como um direito fundamental de todos os cidadãos e um dever do Estado, garantindo acesso aos serviços de saúde independentemente de condição socioeconômica, cor, raça, gênero ou qualquer outra característica. A universalidade derruba barreiras, assegurando que o SUS seja para todos, em todos os níveis de assistência.
Contudo, para que o acesso universal seja verdadeiramente justo e efetivo, entra em cena a equidade. Ela reconhece que, para alcançar a igualdade de oportunidades em saúde, é preciso "dar a cada um o que ele necessita". A equidade se manifesta principalmente de duas formas:
- Equidade Horizontal: Indivíduos com necessidades de saúde semelhantes devem receber o mesmo nível de cuidado. Trata-se de tratar os iguais de forma igual.
- Equidade Vertical: Os desiguais devem ser tratados de forma desigual, na medida de suas desigualdades. Grupos com maiores vulnerabilidades ou necessidades devem receber mais recursos e atenção para compensar desvantagens.
Dessa forma, a universalidade abre as portas do SUS, enquanto a equidade ajusta o caminho, garantindo que cada pessoa receba o cuidado necessário, no momento certo e da forma adequada, para que a igualdade de oportunidades em saúde se torne uma meta tangível.
A Equidade na Prática: Exemplos no Cotidiano do SUS
O princípio da equidade, longe de ser um conceito abstrato, ganha vida diariamente nas práticas e estratégias do Sistema Único de Saúde (SUS), traduzindo-se em ações concretas.
Na Atenção Primária à Saúde (APS): A APS é o alicerce da equidade, ofertando cuidado que considera as distintas condições de vida e saúde, visando minimizar desigualdades. Isso inclui desde o acesso universal como base para identificar necessidades específicas, até a flexibilização de horários e estratégias de "encaixe" para grupos com dificuldades de adesão, buscando uma cobertura idealmente total.
No Acesso e Oferta de Serviços: A equidade orienta a priorização do atendimento para grupos vulneráveis (idosos, crianças, gestantes) e a utilização da classificação de risco em urgências, assegurando que os casos mais críticos recebam atenção prioritária. O combate ao preconceito e à discriminação, como em doenças estigmatizantes, também é crucial para um acesso equitativo.
Em Políticas de Saúde Específicas: O SUS implementa diversas políticas desenhadas para atender às particularidades de populações historicamente negligenciadas ou com necessidades singulares, como a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, políticas para populações do campo, floresta e águas, atenção à saúde de ciganos, pessoas em situação de rua, pessoas com deficiência, a comunidade LGBTQIA+, e políticas de atenção integral à saúde da mulher e do homem.
Na Distribuição de Recursos: A alocação de recursos (financeiros, humanos, infraestrutura) deve ser heterogênea, direcionando mais investimentos para áreas e populações com maiores carências e piores indicadores de saúde, visando promover uma distribuição social justa.
Em Situações Críticas: Durante a pandemia de COVID-19, a equidade guiou a estratégia de vacinação, priorizando grupos de maior risco e vulnerabilidade e posicionando-se contra medidas que pudessem ampliar desigualdades no acesso às vacinas.
Rumo à Justiça em Saúde: O Papel da Equidade na Redução de Iniquidades
A aplicação prática da equidade no SUS tem um objetivo fundamental: ser uma ferramenta poderosa no combate às disparidades e na redução das iniquidades em saúde, que são aquelas diferenças no estado de saúde ou na distribuição de recursos que são sistemáticas, socialmente produzidas, injustas e evitáveis.
Essas iniquidades são, em grande medida, reflexo dos Determinantes Sociais da Saúde (DSS) – condições como renda, educação, condições de trabalho, ambiente físico, inclusão social e acesso a serviços de saúde de qualidade. Os DSS são frequentemente estruturais e responsáveis pela maior parte das desigualdades, tanto entre países quanto internamente, como no Brasil. Um exemplo são as disparidades regionais, onde áreas com piores indicadores socioeconômicos enfrentam maiores desafios no acesso e nos resultados de saúde. A Lei Complementar 141/2012, por exemplo, busca promover maior equidade na alocação de recursos financeiros para mitigar tais desigualdades.
É aqui que o poder transformador da equidade se manifesta. Ao reconhecer que diferentes grupos possuem necessidades distintas, ela propõe uma distribuição diferenciada da atenção e dos recursos, direcionando mais para quem mais precisa. Isso se concretiza através da alocação estratégica de equipes de saúde, adaptação de horários de atendimento, implementação de programas específicos para populações vulneráveis e investimento prioritário em infraestrutura em regiões desassistidas. O objetivo final é promover resultados de saúde mais justos, assegurando que o acesso aos cuidados seja determinado pela real necessidade do indivíduo, e não por barreiras sociais ou econômicas, construindo um Brasil mais saudável e justo para todos.
Ao longo desta análise, desvendamos as sutis, porém profundas, diferenças entre igualdade e equidade, pilares que sustentam a busca por justiça no Sistema Único de Saúde. Vimos que, enquanto a igualdade estabelece um tratamento uniforme, a equidade reconhece as necessidades diversas, adaptando o cuidado para garantir que todos, independentemente de suas condições, tenham a oportunidade de alcançar o melhor estado de saúde possível. Compreender e aplicar o princípio da equidade é, portanto, mais do que uma diretriz técnica; é um imperativo ético para construir um SUS que efetivamente reduza iniquidades e promova a saúde de forma universal e integral.