Quando o tratamento clínico para o refluxo gastroesofágico não é mais suficiente, a cirurgia se torna uma esperança para restaurar a qualidade de vida. No entanto, o termo "cirurgia de refluxo" não se refere a um procedimento único, mas a um conjunto de técnicas sofisticadas, cada uma com sua própria indicação e particularidade. Compreender as diferenças entre as fundoplicaturas de Nissen, Toupet e Dor não é apenas um detalhe técnico; é o primeiro passo para uma decisão informada e um diálogo produtivo com sua equipe médica. Este guia foi elaborado para desmistificar essa escolha, explicando de forma clara e direta como cada técnica funciona, para quem ela é indicada e o que esperar do processo, do preparo à recuperação.
O Que é a Cirurgia de Fundoplicatura e Quando Ela é Indicada?
A fundoplicatura é o procedimento cirúrgico mais consagrado para o tratamento da Doença do Refluxo Gastroesofágico (DRGE). Seu objetivo é construir uma nova e eficaz válvula antirrefluxo, corrigindo a falha mecânica do esfíncter esofágico inferior que permite o retorno do conteúdo ácido do estômago para o esôfago. Para isso, o cirurgião utiliza uma parte do próprio estômago — o fundo gástrico — envolvendo-o total ou parcialmente ao redor da porção final do esôfago. Essa "abraçadeira" natural aumenta a pressão na região, impedindo o refluxo. Atualmente, a grande maioria desses procedimentos é realizada por laparoscopia, uma técnica minimamente invasiva que utiliza pequenas incisões, resultando em menos dor e uma recuperação mais rápida.
A indicação cirúrgica, no entanto, não é a primeira linha de tratamento. Ela é reservada para situações específicas, como:
- DRGE Refratária ao Tratamento Clínico: Pacientes com sintomas significativos (azia, regurgitação) apesar do uso otimizado de medicamentos, como os Inibidores da Bomba de Prótons (IBPs).
- Presença de Hérnia de Hiato Volumosa: Quando parte do estômago desliza para o tórax, a cirurgia é necessária para reposicionar o órgão e corrigir o defeito anatômico.
- Intolerância ou Efeitos Adversos aos Medicamentos: Pacientes que não toleram o uso contínuo de IBPs.
- Opção do Paciente: Especialmente em pacientes jovens que buscam uma solução definitiva e não desejam depender de medicação por toda a vida.
- Complicações da DRGE: Casos de esofagite (inflamação do esôfago) grave que não cicatriza com o tratamento clínico.
É fundamental entender que a escolha da técnica cirúrgica — seja uma fundoplicatura total como a de Nissen, ou parcial como as de Toupet e Dor — não é aleatória. Ela é uma decisão personalizada, baseada em uma avaliação criteriosa da anatomia e, principalmente, da função motora do esôfago de cada paciente.
Fundoplicatura de Nissen (360°): A Técnica Padrão-Ouro
A Fundoplicatura de Nissen é, sem dúvida, a protagonista no tratamento cirúrgico da DRGE. Consolidada como o padrão-ouro, sua principal característica é a criação de uma válvula antirrefluxo completa, ou seja, uma plicatura de 360 graus.
Como a Cirurgia é Realizada?
Realizada majoritariamente por via laparoscópica, a técnica segue etapas cruciais:
- Mobilização do Fundo Gástrico: O cirurgião libera a parte superior do estômago (fundo gástrico), garantindo que ele tenha mobilidade suficiente para envolver o esôfago.
- Correção da Hérnia de Hiato (Hiatoplastia): Quase sempre presente, a hérnia de hiato é corrigida. O cirurgião aproxima os pilares do diafragma com suturas, fechando o espaço alargado por onde o esôfago passa.
- Criação da Válvula de 360°: O fundo gástrico mobilizado é passado por trás do esôfago e envolvido completamente ao seu redor, como um "colar". Essa estrutura é fixada com suturas, criando uma válvula de alta pressão que impede fisicamente o refluxo.
A técnica moderna preconiza uma válvula mais curta e "frouxa" (floppy Nissen), um refinamento que mantém a eficácia enquanto minimiza o risco de efeitos colaterais, como a dificuldade para engolir (disfagia).
Vantagens e Indicação Principal
A Nissen é a técnica mais empregada por sua alta eficácia, com taxas de sucesso na resolução dos sintomas que variam entre 85% e 90%. É o procedimento de escolha para pacientes com DRGE severa que possuem uma motilidade esofágica normal, ou seja, a capacidade do esôfago de empurrar o alimento para baixo está preservada. Por criar a barreira mais robusta, representa uma solução duradoura e definitiva para a maioria dos pacientes.
Fundoplicatura Parcial Posterior: A Técnica de Toupet
Enquanto a Nissen cria uma válvula completa, a técnica de Toupet oferece uma abordagem alternativa: a fundoplicatura parcial posterior. Este procedimento consiste em criar uma válvula que envolve o esôfago distal em um arco de aproximadamente 270 graus.
Como a Técnica de Toupet é Realizada?
Após a correção da hérnia de hiato, o fundo gástrico é passado por trás (posteriormente) do esôfago. Em seguida, essa porção do estômago é suturada aos pilares diafragmáticos e às faces anterolaterais do próprio esôfago. O resultado é uma "braçadeira" parcial que reforça o esfíncter, mas não o comprime completamente, oferecendo menor resistência à passagem dos alimentos.
A Indicação Principal: Pacientes com Motilidade Esofágica Comprometida
A grande vantagem da fundoplicatura de Toupet reside em sua indicação para pacientes com distúrbios de motilidade, como a hipocontratilidade esofágica, onde as contrações do esôfago são fracas. Nesses indivíduos, uma válvula completa como a de Nissen poderia criar uma barreira muito forte, resultando em disfagia pós-operatória (dificuldade para engolir). A técnica de Toupet minimiza significativamente esse risco, mantendo um excelente controle do refluxo. Em resumo, ela equilibra o controle eficaz da DRGE com a preservação da função de deglutição.
Fundoplicatura Parcial Anterior: A Técnica de Dor
Diferente das abordagens de Nissen e Toupet, a fundoplicatura de Dor se posiciona como uma técnica parcial anterior. Nela, o fundo gástrico é dobrado sobre a face da frente do esôfago, criando uma "cobertura" de aproximadamente 180 graus.
A Principal Indicação: Um Procedimento Adjuvante
A indicação mais clássica da técnica de Dor não é o tratamento primário da DRGE comum. Em vez disso, ela é utilizada como um procedimento adjuvante, realizado em conjunto com a miotomia de Heller — a cirurgia padrão para acalasia, uma desordem onde o esfíncter esofágico inferior não relaxa.
Durante a miotomia, o cirurgião corta as fibras musculares do esfíncter para aliviar a obstrução, mas isso pode inadvertidamente causar refluxo. A fundoplicatura de Dor é realizada logo após para cumprir um duplo objetivo:
- Prevenir o Refluxo Iatrogênico: Cria uma barreira leve para impedir o refluxo ácido.
- Proteger a Miotomia: A dobra do estômago cobre a área onde o músculo foi cortado, protegendo a região.
Por ser menos restritiva, a técnica de Dor é ideal para pacientes com motilidade já comprometida pela acalasia, representando uma solução elegante para um cenário clínico muito específico.
Nissen, Toupet ou Dor? A Escolha da Técnica Ideal
A decisão entre uma fundoplicatura total (Nissen) ou parcial (Toupet, Dor) é um dos melhores exemplos de medicina personalizada na cirurgia. A escolha não se baseia em preferência, mas em dados objetivos para encontrar o equilíbrio perfeito entre o controle máximo do refluxo e o mínimo de efeitos colaterais.
O pilar dessa decisão é a motilidade esofágica, avaliada por um exame pré-operatório fundamental: a manometria esofágica, que mede a força e a coordenação das contrações do esôfago. Com base nos resultados, a estratégia é definida:
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Cenário de Motilidade Normal: Se a manometria mostra que o esôfago tem força contrátil saudável, a Fundoplicatura de Nissen (total) é a técnica de eleição. O esôfago é forte o suficiente para empurrar o alimento através da nova válvula de 360°, garantindo o controle mais robusto do refluxo.
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Cenário de Motilidade Comprometida: Se a manometria identifica fraqueza ou descoordenação motora (hipomotilidade), uma válvula total seria arriscada, podendo causar dificuldade para engolir (disfagia). Nesses casos, a Fundoplicatura de Toupet (parcial posterior) é a mais indicada, pois controla o refluxo sem exigir um esforço excessivo do esôfago.
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Cenário Específico (Acalasia): Para pacientes submetidos à miotomia de Heller para tratamento da acalasia, a Fundoplicatura de Dor (parcial anterior) é a escolha padrão para prevenir o refluxo pós-operatório sem criar uma nova obstrução.
Preparo, Complicações e Vida Após a Cirurgia
A jornada cirúrgica envolve mais do que apenas o procedimento em si. O preparo e o conhecimento sobre a recuperação e potenciais complicações são essenciais.
Preparo e Técnica Cirúrgica
O procedimento padrão é a videolaparoscopia, que envolve a hiatoplastia (correção da hérnia de hiato) seguida da confecção da válvula. Para prevenir infecções, administra-se um antibiótico profilático (geralmente Cefazolina) antes do início da cirurgia.
Complicações Potenciais
Embora segura, a cirurgia tem riscos. A experiência da equipe e a avaliação pré-operatória criteriosa são fundamentais para minimizá-los. As principais complicações incluem:
- Disfagia (dificuldade para engolir): É a complicação tardia mais comum. A escolha correta da técnica baseada na manometria é a principal forma de prevenção.
- Lesão do Nervo Vago: Durante a dissecção do esôfago, a lesão dos nervos vagos pode levar a um retardo no esvaziamento gástrico (gastroparesia). A identificação e preservação cuidadosa dessas estruturas é um passo técnico essencial.
- Recorrência do Refluxo: Pode ocorrer por deiscência (ruptura) das suturas ou herniação da válvula para o tórax se a hiatoplastia não for adequada.
A Vida Após a Cirurgia
A recuperação inicial envolve uma dieta líquida que progride lentamente. É comum sentir alguma dificuldade para engolir e inchaço (gas bloat syndrome) nas primeiras semanas, sintomas que geralmente melhoram. A longo prazo, os resultados são excelentes. Estudos demonstram que a fundoplicatura laparoscópica proporciona uma taxa de satisfação de 90% a 95%, com a maioria dos pacientes interrompendo o uso de medicamentos e desfrutando de uma vida livre dos sintomas da DRGE.
A decisão de se submeter a uma cirurgia de refluxo é significativa, e entender as nuances entre as técnicas de Nissen, Toupet e Dor é crucial. Como vimos, não existe uma única "melhor" cirurgia, mas sim a cirurgia mais adequada para cada paciente, determinada por uma avaliação cuidadosa da sua fisiologia. Essa abordagem personalizada é a chave para maximizar a eficácia do tratamento e garantir uma excelente qualidade de vida a longo prazo.