Na linha de frente do trauma, onde cada segundo é decisivo, a capacidade de diagnosticar rapidamente uma hemorragia interna pode ser a diferença entre a vida e a morte. Por décadas, o Lavado Peritoneal Diagnóstico (LPD) foi o pilar dessa investigação. Hoje, com o domínio do ultrassom FAST, o LPD pode parecer uma relíquia. No entanto, subestimá-lo é um erro. Este guia foi concebido para resgatar o LPD do esquecimento, posicionando-o como uma ferramenta de exceção, porém vital, no arsenal do profissional de saúde. Abordaremos de forma direta e prática não apenas como e quando realizar o procedimento, mas, crucialmente, como integrá-lo de forma inteligente ao lado do FAST e da tomografia, garantindo que você esteja preparado para qualquer cenário, especialmente aqueles com recursos limitados.
O Que é o Lavado Peritoneal Diagnóstico (LPD)?
O Lavado Peritoneal Diagnóstico (LPD) é um procedimento diagnóstico rápido e invasivo, projetado para detectar a presença de sangue (hemoperitônio), conteúdo intestinal ou bile na cavidade peritoneal após um trauma. Historicamente, foi uma pedra angular na avaliação do trauma abdominal fechado, especialmente em pacientes com instabilidade hemodinâmica ou alteração do nível de consciência, nos quais o exame físico é pouco confiável.
A sua premissa é simples: através de uma pequena incisão (geralmente infraumbilical), um cateter é inserido na cavidade peritoneal. A aspiração inicial de 10 ml ou mais de sangue indica um sangramento significativo, justificando uma laparotomia de emergência. Caso a aspiração seja negativa, infunde-se uma solução salina que, após circular pela cavidade, é drenada e enviada para análise.
Com o advento e a ampla disseminação do ultrassom à beira do leito, especificamente o FAST (Focused Assessment with Sonography for Trauma), o papel do LPD mudou drasticamente. O FAST oferece uma avaliação não invasiva, rápida e repetível, tornando-se o método de escolha na maioria dos centros de trauma para o paciente instável. Apesar disso, o LPD não se tornou obsoleto, mantendo sua relevância como uma ferramenta diagnóstica crucial em cenários específicos, atuando onde outros métodos falham ou não estão disponíveis.
Indicações, Contraindicações e Limitações
A chave para o uso eficaz do LPD é a seleção criteriosa do paciente. Saber quando indicá-lo, e mais importante, quando não o fazer, é fundamental.
Indicações Essenciais
- Instabilidade hemodinâmica em trauma contuso com FAST indisponível: Este é o cenário clássico. Se um paciente traumatizado está chocado sem uma fonte óbvia de sangramento, o LPD pode rapidamente confirmar ou descartar um hemoperitônio como a causa.
- Resultado do FAST duvidoso ou inconclusivo: Em um paciente instável, uma avaliação ultrassonográfica pode ser limitada por obesidade, gás intestinal ou enfisema subcutâneo. Nesses casos, o LPD surge como a próxima etapa lógica.
- Exame físico abdominal não confiável: A avaliação abdominal pode ser imprecisa em pacientes com alteração do nível de consciência (TCE, intoxicação), lesão medular que altera a sensibilidade, ou fraturas de costelas inferiores ou pelve que mimetizam dor abdominal.
- Alta suspeita de lesão de víscera oca: O LPD é notavelmente mais sensível que o FAST para detectar pequenas quantidades de contaminação intestinal ou bile, que não seriam visíveis como líquido livre no ultrassom inicial.
Contraindicações Absolutas
A regra de ouro é simples: o LPD está absolutamente contraindicado quando já existe uma indicação formal de laparotomia exploradora. Realizá-lo nesses casos apenas consome tempo precioso. As contraindicações incluem:
- Sinais de peritonite (abdome em tábua, dor à descompressão).
- Evisceração (saída de órgãos abdominais por uma ferida).
- Pneumoperitônio evidente em exames de imagem.
- Ferimento por arma de fogo com trajetória transperitoneal.
Limitações Importantes
- Caráter Invasivo: Carrega riscos de sangramento, infecção e lesão iatrogênica de órgãos.
- Incapacidade de Avaliar o Retroperitônio: Esta é sua maior desvantagem. Lesões graves em estruturas como pâncreas, rins e grandes vasos podem passar despercebidas, resultando em um falso negativo perigoso.
- Baixa Eficácia para Lesões Diafragmáticas: Não é um método confiável para detectar rupturas no diafragma.
- Alta Taxa de Laparotomias Não Terapêuticas: Por ser extremamente sensível, mas pouco específico quanto à origem e magnitude do sangramento, pode levar a cirurgias desnecessárias para lesões com sangramento autolimitado.
A Técnica do LPD Passo a Passo
A execução correta da técnica é fundamental para garantir a segurança e a precisão do resultado. O procedimento pode ser realizado por duas abordagens principais: a técnica aberta (Hasson) ou a fechada (Seldinger).
1. Preparo do Paciente e do Material
- Descompressão Gástrica e Vesical: A inserção de uma sonda nasogástrica e de um cateter vesical é obrigatória para esvaziar o estômago e a bexiga, reduzindo o risco de perfuração.
- Assepsia e Anestesia: Realiza-se a assepsia da parede abdominal e infiltra-se um anestésico local no local da incisão.
- Local de Inserção: O ponto padrão é na linha média, infraumbilical. Em gestantes ou em casos de fratura pélvica, o acesso supraumbilical é preferível.
2. Inserção do Cateter: Técnica Aberta vs. Fechada
- Técnica Aberta (Hasson): Considerada mais segura e recomendada. Realiza-se uma pequena incisão vertical, dissecando os tecidos até a visualização direta do peritônio, que é incisado para a inserção do cateter sob visão direta.
- Técnica Fechada (Seldinger): Abordagem percutânea "cega", mais rápida, porém com maior risco de lesão. Uma agulha é inserida na cavidade, um fio-guia é passado por ela, a agulha é removida e o cateter é introduzido sobre o fio-guia.
3. Aspiração e Lavado
- Fase 1: Aspiração Inicial: Conecta-se uma seringa ao cateter e realiza-se uma aspiração suave. A aspiração de 10 mL ou mais de sangue vivo ou a presença de conteúdo gastrointestinal encerra o procedimento, indicando laparotomia.
- Fase 2: Infusão e Drenagem (Lavado): Se a aspiração for negativa, infunde-se 1 litro de soro fisiológico aquecido (em adultos) ou 10 mL/kg (em crianças). O abdome pode ser gentilmente manipulado para espalhar o fluido. Em seguida, o frasco de soro é posicionado no chão, permitindo que o líquido retorne por efeito de sifão para ser coletado e analisado.
Interpretando os Resultados: Critérios de Positividade
A análise do material coletado é o passo decisivo que guiará a conduta. Um resultado positivo é, na maioria das vezes, uma indicação formal para laparotomia exploradora.
Análise Macroscópica (Aspirado Inicial)
O resultado é considerado francamente positivo e o procedimento é interrompido se houver:
- Aspiração de 10 ml ou mais de sangue vivo: Sinal inequívoco de hemoperitônio significativo.
- Aspiração de conteúdo gastrointestinal: Presença visível de bile, fezes ou partículas de alimentos, confirmando perfuração de víscera oca.
Análise do Lavado (Critérios Microscópicos e Bioquímicos)
Se a aspiração inicial for negativa, o líquido do lavado (efluente) é enviado para análise. O LPD é considerado positivo se um ou mais dos seguintes critérios forem encontrados:
- Hemácias: ≥ 100.000 células/mm³ (no trauma fechado)
- Leucócitos: ≥ 500 células/mm³
- Amilase: > 75 UI/L
- Fosfatase Alcalina: > 10 UI/L
- Presença de bactérias (pela coloração de Gram), bile ou fibras alimentares.
LPD vs. FAST: O Algoritmo Diagnóstico no Trauma Abdominal
A escolha da ferramenta diagnóstica correta depende da estabilidade hemodinâmica do paciente e dos recursos disponíveis.
| Característica | Ultrassom FAST / e-FAST | Lavado Peritoneal Diagnóstico (LPD) | | :--- | :--- | :--- | | Invasividade | Não invasivo. | Minimamente invasivo. | | Rapidez | Muito rápido (< 2 minutos). | Mais demorado. | | Repetibilidade | Facilmente repetível. | Não é facilmente repetível. | | O que Detecta?| Principalmente líquido livre (sangue). | Sangue (altíssima sensibilidade), bile, fezes, bactérias. | | Pontos Cegos | Lesões de vísceras ocas (sem líquido livre), lesões diafragmáticas, sangramentos retroperitoneais. | Sangramentos retroperitoneais contidos. | | Complicações | Praticamente nenhuma. | Risco de sangramento, infecção, perfuração de órgãos. |
O Algoritmo de Decisão
1. Paciente Hemodinamicamente INSTÁVEL
- Primeiro Passo: Realizar o FAST na sala de emergência.
- FAST Positivo (líquido livre): A conduta é a laparotomia exploradora de emergência. Não há indicação para LPD ou TC.
- FAST Negativo ou Inconclusivo: Se a instabilidade persiste e outras fontes de sangramento (tórax, pelve, ossos longos) foram descartadas, a suspeita de lesão abdominal continua alta. Neste cenário, o LPD se torna uma ferramenta valiosa:
- Um LPD positivo confirma a necessidade de laparotomia.
- Um LPD negativo direciona a investigação para causas não hemorrágicas de choque ou fontes de sangramento ocultas (como o retroperitônio).
2. Paciente Hemodinamicamente ESTÁVEL
- Padrão-Ouro: A Tomografia Computadorizada (TC) de abdome com contraste é o exame de escolha. Ela oferece um detalhamento anatômico preciso, avalia órgãos sólidos, vísceras ocas e o retroperitônio, permitindo um planejamento terapêutico definitivo.
- Papel do LPD: O LPD raramente é indicado em pacientes estáveis, pois a TC oferece informações muito superiores com menor risco.
Dominar o algoritmo do trauma abdominal moderno significa entender o papel de cada ferramenta. O LPD não é mais a primeira linha de defesa, mas sim um recurso estratégico e potencialmente salvador. Sua indicação precisa — no paciente instável com FAST indisponível ou inconclusivo — demonstra um profundo conhecimento clínico e a capacidade de adaptação a diferentes realidades de atendimento. Conhecer este procedimento clássico não é um passo atrás, mas um diferencial que completa o arsenal de qualquer profissional que atue na linha de frente.
Agora que você explorou este tema a fundo, que tal testar seus conhecimentos? Confira nossas Questões Desafio preparadas especialmente sobre este assunto