A determinação da morte encefálica representa um dos momentos mais desafiadores e solenes da prática médica, um ponto de convergência entre a ciência, a ética e a lei. Compreender o protocolo que a rege não é apenas um requisito técnico, mas uma necessidade para garantir a segurança, o respeito e a dignidade no fim da vida. Este guia foi elaborado para desmistificar o processo, oferecendo um roteiro claro e detalhado sobre os critérios diagnósticos e a base legal da Resolução CFM 2.173/17, capacitando profissionais e estudantes a navegar por este tema com a precisão e a humanidade que ele exige.
Compreendendo a Morte Encefálica: Definição, Conceito e Base Legal
A morte encefálica (ME) é a perda completa e irreversível de todas as funções do encéfalo, que inclui o cérebro e o tronco cerebral. Do ponto de vista médico e jurídico, a ME é considerada a morte propriamente dita. É crucial diferenciá-la do coma, estado no qual, embora o paciente esteja inconsciente, ainda existem atividades no tronco cerebral e, portanto, uma possibilidade de recuperação. Na morte encefálica, essa atividade cessou de forma definitiva; o coração e outros órgãos só se mantêm em funcionamento por tempo limitado e com suporte artificial intensivo.
O diagnóstico exige a identificação de uma causa conhecida, comprovada e capaz de explicar a lesão cerebral grave e irreversível.
A Base Legal e a Importância do Diagnóstico
No Brasil, a ME é legalmente reconhecida como o critério para a determinação do óbito, conforme a Lei nº 9.434/97 (Lei de Transplantes). Para garantir a segurança e a precisão, o Conselho Federal de Medicina (CFM) estabeleceu um protocolo rigoroso através da Resolução CFM nº 2.173/17, a norma vigente que detalha todos os procedimentos obrigatórios.
A correta determinação da morte encefálica é de suma importância por múltiplos motivos:
- Definição do óbito: Oferece um marco definitivo e seguro para declarar a morte do paciente, proporcionando clareza para a equipe médica e para a família.
- Viabilização da doação de órgãos e tecidos: É a condição essencial para que o processo de doação possa ser iniciado, salvando e melhorando a vida de inúmeras pessoas.
- Suspensão de tratamentos fúteis: Evita a continuidade de medidas terapêuticas que não trarão qualquer benefício ao paciente (distanásia), sendo uma conduta ética e legalmente amparada.
O óbito é decretado no momento em que o diagnóstico de morte encefálica é concluído, o que geralmente ocorre após a realização do último exame exigido pelo protocolo.
O Início do Protocolo: Pré-Requisitos e Condições Essenciais
A determinação da morte encefálica é o resultado de um processo diagnóstico meticuloso. Antes de iniciar a avaliação neurológica, a equipe médica deve garantir que um conjunto de pré-requisitos seja rigorosamente cumprido para evitar que condições reversíveis sejam confundidas com a perda irreversível da função encefálica.
O ponto de partida é um cenário clínico bem definido:
- Lesão Encefálica de Causa Conhecida e Irreversível: O paciente deve apresentar um coma profundo, não reativo, cuja origem é uma lesão estrutural encefálica grave e bem documentada (ex: traumatismo cranioencefálico severo, AVC extenso).
- Ausência de Fatores Confundidores: É imperativo descartar ou corrigir quaisquer fatores que possam mimetizar a ME, como hipotermia severa (temperatura corporal deve ser > 35°C) ou o uso de fármacos depressores do Sistema Nervoso Central.
- Período Mínimo de Observação Hospitalar: Este tempo é crucial para confirmar a irreversibilidade do quadro:
- Mínimo de 6 horas para a maioria das lesões encefálicas.
- Mínimo de 24 horas para casos de encefalopatia hipóxico-isquêmica (ex: após parada cardiorrespiratória prolongada), devido à natureza mais incerta da evolução neurológica.
- Estabilidade Fisiológica: O paciente deve atingir parâmetros mínimos, mesmo que com suporte de fármacos:
- Temperatura Corporal: Superior a 35°C.
- Saturação de Oxigênio (SaO2): Acima de 94%.
- Pressão Arterial (em adultos): PAS ≥ 100 mmHg ou PAM ≥ 65 mmHg.
Somente quando todos esses critérios são atendidos é que a equipe médica está autorizada a abrir formalmente o protocolo e avançar para os exames neurológicos.
A Avaliação Clínica: O Exame Neurológico e os Reflexos de Tronco
O exame clínico neurológico é o pilar do diagnóstico. Conforme o protocolo, esta avaliação deve ser realizada por dois médicos distintos e capacitados, com um intervalo mínimo entre os exames, garantindo a máxima segurança. O objetivo é comprovar a cessação irreversível de todas as funções do encéfalo.
O primeiro passo é a constatação de um coma aperceptivo (arresponsividade total), que se traduz em uma pontuação 3 na Escala de Coma de Glasgow (GCS). Em seguida, procede-se à avaliação sistemática dos reflexos do tronco encefálico:
- Reflexo Fotomotor: As pupilas permanecem fixas e não reativas à luz.
- Reflexo Córneo-Palpebral: Ausência de piscar ao toque suave da córnea.
- Reflexo Óculo-Cefálico (Manobra dos "Olhos de Boneca"): Os olhos permanecem fixos, acompanhando o movimento da cabeça. (Contraindicado se houver suspeita de lesão na coluna cervical).
- Reflexo Vestíbulo-Calórico (Prova Calórica): Ausência de movimento ocular após a injeção de água gelada no conduto auditivo.
- Reflexo de Tosse: Ausência de tosse ou esforço reflexo ao estimular a traqueia com um cateter de aspiração.
O Teste da Apneia: A Prova Final da Função Respiratória
Após confirmar a ausência dos reflexos de tronco, realiza-se o teste da apneia. Ele verifica se o centro respiratório perdeu sua capacidade de responder ao acúmulo de dióxido de carbono (CO₂). O paciente é pré-oxigenado e desconectado da ventilação mecânica. O teste é considerado positivo (compatível com ME) se, após cerca de 10 minutos, não houver nenhum esforço respiratório e a pressão parcial de CO₂ (PaCO₂) no sangue atingir ou ultrapassar 55 mmHg.
A combinação de GCS 3, ausência de todos os reflexos de tronco e um teste de apneia positivo, confirmada em duas avaliações, sela o diagnóstico clínico, abrindo caminho para o exame complementar.
Exames Complementares: A Confirmação da Ausência de Atividade Encefálica
Após a rigorosa avaliação clínica demonstrar a ausência de função do tronco encefálico, o protocolo exige um passo final e decisivo: a realização de um exame complementar obrigatório. Este teste serve como uma confirmação objetiva e instrumental, fornecendo a prova irrefutável da cessação da atividade cerebral.
O objetivo é demonstrar uma das três condições: ausência de perfusão sanguínea, de atividade metabólica ou de atividade elétrica encefálica. A escolha do exame depende da disponibilidade da instituição, e as opções validadas são:
- Doppler Transcraniano: Utiliza ultrassom para avaliar o fluxo sanguíneo nas artérias intracranianas. Na ME, demonstra a ausência de fluxo sanguíneo cerebral ou padrões específicos que indicam a parada da circulação. Pode ser realizado à beira do leito.
- Arteriografia Cerebral: Um exame de imagem com contraste que confirma a parada total do contraste na base do crânio, provando que o sangue não consegue mais perfundir o encéfalo.
- Eletroencefalograma (EEG): Registra a atividade elétrica do cérebro. Para o diagnóstico de ME, precisa demonstrar "silêncio elétrico cerebral" — ausência completa de atividade cortical por um período contínuo (geralmente 30 minutos).
- Cintilografia de Perfusão Cerebral (SPECT): Exame de medicina nuclear que, na ME, resulta no "sinal do crânio oco" (hollow skull sign), indicando ausência de metabolismo e perfusão no parênquima cerebral.
Independentemente do método, o laudo deve ser emitido por um médico com capacitação específica, finalizando o diagnóstico com uma prova técnica que garante máxima segurança e precisão.
Intervalos Clínicos e a Determinação do Óbito
Uma vez que os pré-requisitos são atendidos e o primeiro exame clínico é realizado, o protocolo exige uma reavaliação para confirmar a persistência do quadro. O intervalo de tempo entre os dois exames clínicos obrigatórios, realizados por médicos distintos, é definido pela idade do paciente:
- Para pacientes com mais de 2 anos de idade: O intervalo mínimo entre o primeiro e o segundo exame clínico é de 1 hora.
- Para faixas etárias inferiores (recém-nascidos a 2 anos): Os intervalos são maiores e especificados na resolução, refletindo a cautela adicional na avaliação do sistema nervoso em desenvolvimento.
A Determinação da Hora Exata do Óbito
Este é um dos pontos mais cruciais do processo. Legal e eticamente, a pessoa é considerada falecida no momento em que a morte encefálica é confirmada, e não quando o coração para de bater. A hora do óbito a ser registrada na Declaração de Óbito é a do momento em que o último critério diagnóstico foi concluído, seja ele o segundo exame clínico, o teste da apneia ou o exame complementar. A partir desse instante, o paciente está legalmente morto, mesmo que a ventilação mecânica mantenha o coração batendo temporariamente.
Comunicação Familiar, Direitos e a Relação com a Doação de Órgãos
O diagnóstico de morte encefálica é um momento de extrema dificuldade para a família. Por isso, o protocolo também delineia um processo de comunicação pautado pela transparência e empatia.
Assim que a equipe levanta a hipótese de ME, os familiares devem ser informados sobre a suspeita e o início dos procedimentos diagnósticos, um passo obrigatório. A família possui direitos assegurados para garantir a confiança no diagnóstico:
- Direito à Informação: A família deve ser mantida a par de todos os passos do protocolo.
- Direito ao Acompanhamento por Médico de Confiança: A resolução garante à família o direito de indicar um médico de sua confiança para acompanhar a realização dos procedimentos.
É crucial compreender a distinção fundamental entre o protocolo de ME e o processo de doação de órgãos:
- O Protocolo é um Ato Diagnóstico: Sua realização é uma obrigação médica para determinar a morte, independentemente da possibilidade de doação. A autorização da família não é necessária para a realização dos testes.
- A Notificação é Compulsória: Confirmada a ME, a notificação às Centrais de Transplantes é obrigatória por lei.
- A Doação é uma Decisão Posterior: Somente após a confirmação e a comunicação do óbito à família, a equipe da Organização de Procura de Órgãos (OPO) poderá abordar a possibilidade da doação, que depende exclusivamente do consentimento familiar.
Em resumo, o protocolo estabelece a morte legal. A doação de órgãos é uma possibilidade que surge a partir dessa constatação, sempre respeitando a vontade e o luto da família.
Percorrer o protocolo de morte encefálica é entender um processo que une rigor técnico, amparo legal e profunda responsabilidade ética. Desde os pré-requisitos iniciais até a confirmação por exames complementares, cada etapa é desenhada para oferecer uma certeza diagnóstica inequívoca, definindo o momento do óbito e permitindo que decisões cruciais, como a suspensão de medidas fúteis e a viabilização da doação de órgãos, sejam tomadas com segurança e respeito. Dominar este fluxo é fundamental para a prática médica consciente e humanizada.
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