Uma das maiores revoluções no tratamento da pancreatite aguda não veio de um novo fármaco ou de uma técnica cirúrgica inovadora, mas de uma reavaliação fundamental do papel do nosso próprio intestino. Por décadas, o dogma do "repouso pancreático" ditou o jejum prolongado como pilar do cuidado. Hoje, a ciência nos mostra o oposto: nutrir o intestino precocemente é uma das intervenções mais poderosas para modular a inflamação, prevenir complicações infecciosas e salvar vidas. Este guia definitivo desmistifica o porquê, o como e o quando da nutrição enteral, transformando um conceito de suporte em uma estratégia terapêutica de primeira linha.
Pancreatite Aguda: O Paradigma Quebrado do 'Repouso Pancreático'
A pancreatite aguda é uma emergência médica caracterizada por uma intensa inflamação do pâncreas, exigindo internação hospitalar para todos os pacientes devido ao risco de evolução para formas graves, como a pancreatite necrosante, que ocorre em 10-20% dos casos e possui alta morbimortalidade. Em quadros de maior gravidade, com disfunção orgânica, escores prognósticos elevados (Ranson, APACHE II) ou necrose extensa, a transferência para uma Unidade de Terapia Intensiva (UTI) é imperativa.
Historicamente, o tratamento se baseava no "repouso pancreático", mantendo o paciente em jejum absoluto na crença de que isso reduziria a estimulação e a inflamação do órgão. Contudo, evidências robustas das últimas décadas demoliram esse paradigma. O jejum prolongado demonstrou ser deletério, abrindo caminho para o conceito de alimentação precoce como pilar terapêutico.
A ciência moderna comprova que iniciar a nutrição, preferencialmente dentro das primeiras 24 a 48 horas, é fundamental. A introdução precoce da dieta exerce efeitos protetores cruciais:
- Preserva a integridade da mucosa intestinal: Manter o intestino nutrido e ativo fortalece a barreira que separa seu conteúdo da corrente sanguínea.
- Previne a translocação bacteriana: Um intestino enfraquecido pelo jejum torna-se permeável, permitindo que bactérias e toxinas "vazem" para a circulação, um gatilho comum para infecções sistêmicas e falência de múltiplos órgãos.
A abordagem atual preconiza o início da dieta oral assim que o paciente melhora da dor e das náuseas, independentemente dos níveis de amilase e lipase. Se a via oral não for tolerada, a nutrição enteral (por sonda) é a escolha, sendo superior à nutrição parenteral (intravenosa). Essa mudança representa uma redefinição do cuidado, estabelecendo a nutrição como uma terapia ativa.
Benefícios Comprovados da Nutrição Enteral Precoce
Longe de ser apenas uma forma de fornecer calorias, a nutrição enteral precoce (NEP) — iniciada nas primeiras 24 a 48 horas — consolidou-se como uma intervenção terapêutica ativa. Seus benefícios atuam diretamente na fisiopatologia da doença:
1. Manutenção da Integridade da Barreira Intestinal: A NEP fornece um efeito trófico direto, oferecendo substratos como a glutamina que servem de combustível para as células intestinais (enterócitos). Isso preserva a arquitetura da mucosa, mantendo a barreira intestinal forte e funcional.
2. Redução da Translocação Bacteriana e Complicações Infecciosas: Ao fortalecer a barreira intestinal, a NEP reduz significativamente o risco de translocação bacteriana. Este fenômeno é um gatilho primário para complicações devastadoras como a infecção da necrose pancreática e a sepse. Estudos demonstram que pacientes em NEP apresentam menores taxas de infecções, falência orgânica e mortalidade.
3. Modulação da Resposta Inflamatória Sistêmica: A pancreatite aguda desencadeia um estado hipermetabólico e hipercatabólico. A NEP ajuda a modular essa resposta inflamatória exacerbada, aumentando o fluxo sanguíneo intestinal e a produção de imunoglobulinas (como a IgA), o que atenua o estresse metabólico sistêmico.
4. Superioridade Fisiológica sobre a Nutrição Parenteral: A via enteral é sempre preferencial à parenteral (NP), que infunde nutrientes na veia. A NE é mais fisiológica, mais segura (evita riscos de acesso venoso central), mais eficaz na proteção do intestino e possui um custo significativamente menor.
Enteral vs. Parenteral: A Escolha Decisiva na Pancreatite
No manejo nutricional da pancreatite aguda, a escolha da via tem um vencedor claro: a Nutrição Enteral (NE). O princípio é simples e poderoso: "se o intestino funciona, use-o".
A superioridade da NE sobre a Nutrição Parenteral (NP) reside nos benefícios fisiológicos e imunológicos já discutidos. A passagem de nutrientes pela luz intestinal estimula os enterócitos, prevenindo a atrofia das vilosidades e a translocação bacteriana, que são gatilhos para as complicações mais temidas da doença. Estudos comparativos demonstram consistentemente que a NE está associada a uma redução significativa de complicações infecciosas, falência de múltiplos órgãos e mortalidade quando comparada à NP.
Isso relegou a Nutrição Parenteral a um papel de terapia de resgate ou complementar. A NP deve ser considerada apenas quando a via enteral é absolutamente contraindicada ou não tolerada, como em casos de:
- Íleo paralítico prolongado.
- Obstrução intestinal completa.
- Fístulas intestinais de alto débito.
Optar pela NP como primeira linha significa abrir mão dos benefícios protetores da NE e expor o paciente a riscos adicionais, como infecções de corrente sanguínea associadas ao cateter, complicações metabólicas e um custo muito mais elevado. A batalha pela primeira linha foi vencida pela via mais fisiológica e segura: a enteral.
Diretrizes Práticas: Como e Quando Iniciar a Terapia Nutricional?
A implementação da nutrição precoce segue diretrizes claras para maximizar seus benefícios e minimizar riscos.
O Momento Ideal: A Janela de Oportunidade
A regra de ouro é iniciar a nutrição enteral (NE) dentro de 24 a 48 horas após a admissão em pacientes com pancreatite aguda moderada a grave, que não tenham previsão de aceitar dieta oral nesse período. Essa urgência visa prevenir a deterioração da barreira intestinal e suas consequências.
A Via de Acesso: Nasogástrica vs. Nasojejunal
Uma vez decidida a NE, a questão é onde posicionar a sonda. Contrariando antigos temores, a sonda nasogástrica (SNG) demonstrou ser segura, eficaz e bem tolerada na maioria dos casos. Sua facilidade de inserção a torna a abordagem de primeira linha. A sonda nasojejunal (SNJ), posicionada após o duodeno, é uma excelente alternativa, especialmente em pacientes com intolerância à dieta gástrica, gastroparesia severa ou alto risco de broncoaspiração.
Manejando a Intolerância
A vigilância clínica é fundamental. Sinais como distensão abdominal, náuseas e vômitos exigem a redução da taxa de infusão ou uma pausa temporária. A diarreia é comum e multifatorial; a abordagem correta é investigar a causa (osmolaridade da fórmula, antibióticos) e ajustar a terapia, em vez de suspendê-la.
A Transição para a Dieta Oral
O objetivo final é o retorno à alimentação fisiológica. A transição para a dieta oral deve ser guiada por critérios clínicos, e não pela normalização dos níveis de amilase e lipase. A dieta pode ser reintroduzida quando o paciente apresentar:
- Melhora significativa da dor abdominal.
- Retorno do apetite.
- Ausência de náuseas e vômitos.
- Presença de ruídos hidroaéreos.
A reintrodução deve ser gradual, começando com líquidos e progredindo para uma dieta sólida com baixo teor de gordura.
Nutrição na Pancreatite Aguda Grave e Necrosante
Na pancreatite necrosante, a NEP se torna uma intervenção ainda mais estratégica. A principal ameaça é a infecção secundária da necrose, um evento que eleva drasticamente a mortalidade. A NEP atua como uma "muralha", fortalecendo a barreira intestinal para impedir a translocação bacteriana que leva a essa infecção.
O suporte nutricional é um pilar que sustenta e potencializa a moderna abordagem "step-up" para a necrose infectada:
- Antibioticoterapia Direcionada: Iniciada apenas na suspeita ou confirmação de infecção, com fármacos de boa penetração pancreática (ex: carbapenêmicos).
- Abordagem "Step-Up" (Escalonada): Se os antibióticos não forem suficientes, a intervenção começa com métodos minimamente invasivos (drenagem percutânea ou endoscópica) e, se necessário, evolui para o desbridamento (necrosectomia endoscópica ou videoassistida). A cirurgia aberta é o último recurso.
Durante todas essas fases, a nutrição enteral contínua é indispensável. Ela garante o suporte metabólico para o paciente combater a infecção e suportar os procedimentos, ao mesmo tempo em que limita a fonte primária de contaminação. Na pancreatite grave, a nutrição não apenas alimenta, mas protege.
A jornada pelo manejo da pancreatite aguda revela uma verdade clínica poderosa: a nutrição deixou de ser um ato passivo para se tornar uma terapia ativa e fundamental. A superação do dogma do "repouso pancreático" em favor da nutrição enteral precoce representa um dos avanços mais significativos na área, impactando diretamente a sobrevida e a recuperação dos pacientes. Ao proteger a barreira intestinal, modular a resposta inflamatória e prevenir infecções devastadoras, a nutrição enteral se firma como o padrão-ouro, uma ferramenta indispensável no arsenal terapêutico moderno.
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