No pronto-socorro, poucas decisões são tão cruciais e dependentes do tempo quanto a abordagem ao trauma abdominal penetrante. Um ferimento por arma branca pode ser uma lesão superficial ou uma catástrofe iminente, e a capacidade de diferenciar esses cenários define o prognóstico do paciente. Este guia foi elaborado para ser uma ferramenta clínica direta e objetiva, destilando os preceitos do ATLS e a prática cirúrgica moderna em um algoritmo claro. Nosso objetivo é capacitar você a estratificar o risco com precisão, reconhecer as indicações cirúrgicas inequívocas e aplicar com segurança o manejo seletivo não operatório, transformando a complexidade do trauma em decisões seguras e baseadas em evidências.
Avaliação Inicial e Estratificação de Risco
O trauma abdominal penetrante, causado por agentes como armas brancas, exige uma abordagem inicial que segue rigorosamente os preceitos do ATLS (Advanced Trauma Life Support). O ponto crucial, que funciona como um verdadeiro divisor de águas na conduta, é a estabilidade hemodinâmica do paciente.
A avaliação primária (o ABCDE do trauma) foca-se em identificar e tratar ameaças imediatas à vida. No contexto do abdome penetrante, a avaliação da circulação (o "C") é primordial. Pacientes que se apresentam com instabilidade hemodinâmica (hipotensão, taquicardia persistente sem resposta à reposição volêmica), sinais de peritonite (defesa abdominal, dor à descompressão) ou evisceração (exposição de órgãos através da ferida) têm indicação mandatória e imediata de laparotomia exploradora. Nestes casos, a prioridade é o controle cirúrgico da hemorragia e da contaminação, não havendo tempo para exames de imagem detalhados.
Ao se deparar com uma evisceração, o manejo pré-operatório correto é crucial:
- Não tente reduzir as vísceras: Jamais empurre o tecido de volta para a cavidade.
- Proteja e umedeça: Cubra o tecido exposto com compressas estéreis e úmidas, embebidas em soro fisiológico 0,9% aquecido. Nunca utilize curativos secos.
Para compreender a probabilidade de lesão, é fundamental diferenciar a cinemática do trauma. Ferimentos por arma branca (FAB) são de baixa energia e o dano tende a seguir um trajeto direto. Embora 50-70% dos FAB na parede anterior penetrem o peritônio, apenas cerca de 30% causam lesões que necessitam de reparo cirúrgico, justificando a abordagem seletiva em pacientes estáveis. Em contraste, ferimentos por arma de fogo (FAF) são de alta energia, com trajetórias imprevisíveis e alta probabilidade de lesão significativa (próxima de 90%), indicando laparotomia na maioria dos casos.
Essa diferença reflete-se nos órgãos mais acometidos, segundo o ATLS (10ª edição):
-
Órgãos mais lesados em Ferimentos por Arma Branca (FAB):
- Fígado (40%)
- Intestino delgado (30%)
- Diafragma (20%)
- Cólon (15%)
-
Órgãos mais lesados em Ferimentos por Arma de Fogo (FAF):
- Intestino delgado (50%)
- Cólon (40%)
- Fígado (30%)
- Estruturas vasculares abdominais (25%)
Portanto, a avaliação inicial não apenas estabiliza o paciente, mas também o estratifica em dois grandes grupos: os instáveis, que necessitam de cirurgia imediata, e os estáveis, cujo manejo detalhado exploraremos a seguir.
O Paciente Estável: A Era do Manejo Seletivo Não Operatório (SNO)
Para o paciente hemodinamicamente estável, sem peritonite ou evisceração, a medicina do trauma evoluiu para o Manejo Seletivo Não Operatório (SNO). Esta estratégia visa evitar laparotomias não terapêuticas, que acarretam morbidade e custos desnecessários.
1. O Primeiro Passo: Exploração Local da Ferida (ELF)
O ponto de partida é determinar se o peritônio foi violado. A ELF, realizada sob anestesia local e em ambiente estéril, busca visualizar diretamente as camadas da parede abdominal.
- Se a aponeurose posterior estiver intacta: O ferimento é não penetrante. A conduta se resume a cuidados locais e o paciente, na maioria dos casos, pode receber alta.
- Se houver violação da aponeurose ou a visualização for duvidosa: A ferida é considerada penetrante, e o protocolo de SNO se aprofunda. A penetração peritoneal, por si só, não é mais uma indicação obrigatória de cirurgia.
2. O Pilar do SNO: Observação Clínica Seriada
Confirmada a penetração peritoneal em um paciente estável, a conduta padrão é a observação hospitalar por 24 horas. Este período de vigilância ativa é o coração do manejo e se baseia em:
- Exames Físicos Seriados: Reavaliação abdominal a cada 4-6 horas por um cirurgião experiente para detectar precocemente sinais de peritonite.
- Hemogramas Seriados: Coletas de sangue (geralmente a cada 8 horas) para monitorar a estabilidade hematológica. Uma queda significativa na hemoglobina (> 3 g/dL) ou o surgimento de leucocitose podem sinalizar uma lesão oculta.
3. O Apoio Diagnóstico: O Papel dos Exames de Imagem
A observação clínica pode ser complementada por exames de imagem, especialmente em cenários específicos.
- FAST (Focused Assessment with Sonography for Trauma): Útil na detecção de hemoperitônio, mas sua sensibilidade é limitada para lesões de vísceras ocas e retroperitoneais. Um FAST negativo não exclui a necessidade de observação.
- Tomografia Computadorizada (TC) com Contraste: É a ferramenta mais valiosa no SNO, especialmente indicada para ferimentos em flanco ou dorso, ou em pacientes com achados clínicos duvidosos.
Abordagens por Topografia: Ferimentos Anteriores, em Flanco e no Dorso
A localização anatômica do ferimento é um fator crítico na determinação da abordagem.
Ferimentos na Parede Abdominal Anterior
Compreendida entre as linhas axilares anteriores, abaixo dos rebordos costais e acima dos ligamentos inguinais, esta é a área com maior probabilidade de lesão visceral intraperitoneal. Para pacientes estáveis, a observação seriada é a conduta de escolha após confirmada a penetração.
Ferimentos em Flanco e Dorso: O Desafio Retroperitoneal
Localizados entre as linhas axilares anterior e posterior (flanco) e posteriormente à linha axilar posterior (dorso), estes ferimentos apresentam alto risco de lesão em estruturas do retroperitônio (rins, pâncreas, duodeno, cólon ascendente/descendente, grandes vasos). Essas lesões são traiçoeiras, pois podem não manifestar sinais precoces de irritação peritoneal. Nesses casos, para o paciente estável, a TC de abdômen com triplo contraste (oral, intravenoso e retal) é o padrão-ouro para uma avaliação detalhada.
A Zona de Transição Toracoabdominal
Qualquer ferimento abaixo da linha mamilar (4º espaço intercostal) deve ser considerado uma potencial lesão toracoabdominal, com risco de acometimento do diafragma, um dos órgãos mais lesados em FAB.
Condutas Intraoperatórias: Do Controle de Danos ao Manejo de Lesões Específicas
Uma vez indicada a laparotomia, os objetivos são o controle da hemorragia e da contaminação. A abordagem padrão é uma incisão na linha média para exploração sistemática.
Para o paciente em estado crítico — com a "tríade letal" de hipotermia, acidose e coagulopatia — a estratégia de eleição é a Cirurgia de Controle de Danos (DCS). Esta abordagem em estágios prioriza a fisiologia sobre a anatomia, com uma laparotomia abreviada para controlar sangramento e contaminação, seguida de reanimação na UTI e reoperação planejada.
O manejo de lesões específicas inclui:
- Lesões de Cólon: Podem variar de reparo primário (rafia) para lesões pequenas a ressecção com ou sem ostomia para lesões extensas, a depender da estabilidade do paciente e do grau de contaminação.
- Hematomas Retroperitoneais e Pélvicos: A regra geral é a não exploração de hematomas estáveis e não expansivos. Abrir um hematoma contido, especialmente na pelve, pode resultar em sangramento maciço e incontrolável. A exploração é reservada para hematomas expansivos ou pulsáteis, que sugerem lesão de grandes vasos.
Cuidados Pós-Manejo, Antibioticoterapia e Complicações Tardias
O manejo não termina no procedimento inicial. A fase de seguimento é crucial.
Seguimento e Critérios de Alta Hospitalar
- Após Exploração Local Negativa: Se o peritônio está intacto, o paciente não necessita de internação para observação abdominal e pode receber alta após cuidados locais.
- Após Manejo Conservador bem-sucedido: Se o paciente permanecer assintomático, com exames físico e laboratoriais estáveis durante as 24 horas de observação, a alta hospitalar pode ser considerada.
O Uso Criterioso da Antibioticoterapia
A antibioticoterapia não é rotineira e deve ser indicada com precisão.
- Indicação Principal: Apenas em casos de lesão de víscera oca (estômago, intestino, cólon). A profilaxia por no máximo 24 horas é o padrão para lesões reparadas.
- Quando NÃO Usar: Lesões isoladas de órgãos sólidos, como fígado ou baço, não requerem o uso de antibióticos.
Complicações Tardias
A complicação mais comum relacionada à parede abdominal é a hérnia incisional pós-traumática, que ocorre devido à falha na cicatrização da fáscia no local do ferimento ou da incisão cirúrgica.
O manejo do trauma abdominal por arma branca representa uma jornada da cirurgia obrigatória para uma abordagem seletiva e criteriosa. Dominar este fluxo de decisão — que pivota na estabilidade hemodinâmica e nos achados do exame físico — é essencial para a prática moderna. Ao internalizar o algoritmo que diferencia o paciente cirúrgico daquele elegível ao tratamento conservador, você estará equipado não apenas para seguir protocolos, mas para aplicar um raciocínio clínico que salva vidas e previne a morbidade de procedimentos desnecessários.
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