No universo da medicina de emergência e terapia intensiva, certos termos podem gerar confusão, mas carregam um peso clínico imenso. A "úlcera de estresse" é um exemplo clássico. Longe de ser uma consequência do estresse emocional do dia a dia, trata-se de uma lesão aguda e grave da mucosa gástrica, desencadeada por agressões fisiológicas extremas em pacientes críticos. Compreender a distinção fundamental entre os seus tipos — a úlcera de Curling, ligada à isquemia, e a de Cushing, impulsionada pela hiperacidez — não é apenas um exercício acadêmico, mas uma competência crucial para o manejo adequado e a prevenção de complicações potencialmente fatais. Este guia foi elaborado para dissecar essa diferença, clarear a fisiopatologia e destacar por que a profilaxia é um pilar no cuidado ao paciente grave.
O Que São Úlceras de Estresse e Sua Fisiopatologia
As úlceras de estresse são um tipo de Lesão Aguda da Mucosa Gastrointestinal (LAMG). Trata-se de erosões ou úlceras superficiais que se desenvolvem rapidamente na parede do estômago ou duodeno em resposta a um estresse fisiológico severo, sem os sinais de cronicidade encontrados em outras úlceras. Elas acometem primariamente pacientes em estado crítico, geralmente internados em Unidades de Terapia Intensiva (UTI), sob condições como:
- Grandes queimaduras (que dão origem ao epônimo "Úlcera de Curling")
- Traumatismo cranioencefálico (TCE) grave (associado à "Úlcera de Cushing")
- Sepse com instabilidade hemodinâmica
- Ventilação mecânica por mais de 48 horas
- Coagulopatias
O mecanismo central por trás da maioria dessas lesões é a falha dos mecanismos de defesa da mucosa gástrica. Em um paciente crítico, o corpo entra em um modo de "luta ou fuga" extremo, redirecionando o fluxo sanguíneo para órgãos vitais como cérebro e coração. Consequentemente, a circulação para o trato gastrointestinal (circulação esplâncnica) é drasticamente reduzida, um fenômeno conhecido como hipoperfusão.
Essa isquemia da mucosa tem consequências devastadoras:
- Comprometimento da Barreira Protetora: A produção de muco e bicarbonato, que revestem e protegem o estômago do ambiente ácido, depende de um suprimento sanguíneo adequado. Com a isquemia, essa camada se torna fina e ineficaz.
- Redução da Renovação Celular: A capacidade das células da mucosa de se regenerarem rapidamente fica prejudicada.
O resultado é uma mucosa fragilizada e indefesa que não consegue mais resistir ao seu próprio ácido clorídrico, levando à formação de lesões agudas, múltiplas e superficiais, localizadas preferencialmente no corpo e fundo do estômago.
É fundamental não confundir as úlceras de estresse com as úlceras pépticas comuns. A úlcera péptica é majoritariamente causada pela bactéria Helicobacter pylori ou pelo uso crônico de AINEs, enquanto a úlcera de estresse decorre de uma grave descompensação fisiológica.
Tipo 1: Úlcera de Curling e a Relação com Grandes Queimaduras
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Otimize sua Preparação! Ver Método ResumeAIA Úlcera de Curling, nomeada em homenagem ao cirurgião Thomas Blizard Curling, é a manifestação clássica do mecanismo isquêmico que acabamos de descrever. Ela está intrinsecamente ligada a pacientes que sofreram queimaduras graves e extensas.
O mecanismo é uma cascata de eventos sistêmicos:
- Hipovolemia e Choque: Um paciente grande queimado perde uma quantidade massiva de fluidos, levando à hipovolemia (baixo volume sanguíneo) e podendo progredir para um estado de choque.
- Isquemia da Mucosa Gástrica: Em resposta ao choque, o corpo centraliza a circulação, sacrificando a perfusão do trato gastrointestinal. Essa hipoperfusão esplâncnica resulta em isquemia na mucosa do estômago.
Com suas defesas comprometidas pela falta de fluxo sanguíneo, a mucosa gástrica torna-se vulnerável à ação do ácido, resultando em erosões e úlceras. Em resumo, a Úlcera de Curling não é causada diretamente pela queimadura na pele, mas pela falha da mucosa gástrica em se proteger devido à isquemia severa desencadeada pelo trauma sistêmico.
Tipo 2: Úlcera de Cushing Associada a Lesões do Sistema Nervoso Central
Em contrapartida, a Úlcera de Cushing segue uma via fisiopatológica completamente diferente, diretamente ligada ao cérebro. Ela surge em pacientes com dano grave no Sistema Nervoso Central (SNC), como traumatismo cranioencefálico (TCE), AVC ou qualquer condição que leve a um aumento da pressão intracraniana.
O que torna a úlcera de Cushing única é seu mecanismo. Diferentemente da falha de defesa por isquemia, a lesão aqui é causada por uma hipersecreção de ácido gástrico. A lesão no SNC provoca uma hiperestimulação do nervo vago, que por sua vez dispara uma produção maciça de ácido clorídrico pelas células parietais do estômago.
Esse ambiente gástrico extremamente agressivo supera os mecanismos de defesa e leva à formação de úlceras que podem ser mais profundas e com maior risco de perfuração.
Pontos-Chave da Úlcera de Cushing:
- Causa Primária: Lesão aguda do SNC (TCE, AVC, hipertensão intracraniana).
- Mecanismo Chave: Hiperestimulação vagal, resultando em hiperacidez gástrica.
- Localização: Estômago e/ou duodeno.
- Característica Distintiva: É uma úlcera de "ataque" (excesso de ácido), contrastando com a úlcera de "defesa falha" (isquemia) da úlcera de Curling.
Manifestações Clínicas e Diagnóstico em Pacientes Críticos
O quadro clínico das úlceras de estresse é influenciado pela condição grave do paciente. A dor abdominal é rara, pois a maioria dos pacientes está sedada, intubada ou com o nível de consciência rebaixado.
A principal e mais temida manifestação é o sangramento:
- Hemorragia Digestiva Alta (HDA): Este é o sinal mais comum. Pode se manifestar como hematêmese (vômito com sangue), melena (fezes escurecidas) ou, em pacientes intubados, um resíduo gástrico sanguinolento na sonda. Uma queda inexplicada nos níveis de hemoglobina também pode ser um sinal.
- Perfuração: Embora menos comum, é uma complicação gravíssima que leva a um quadro de abdome agudo perfurativo.
O diagnóstico de escolha é a endoscopia digestiva alta (EDA). O exame permite a visualização direta das lesões, que caracteristicamente são agudas, múltiplas, superficiais e localizadas no fundo e corpo gástrico, sem sinais de cronicidade. A EDA não só confirma o diagnóstico, mas também pode ser usada para controlar o sangramento.
A Importância da Profilaxia: Prevenindo a Úlcera de Estresse
No cenário da UTI, a profilaxia é o pilar central do manejo, visando evitar a hemorragia digestiva em pacientes já vulneráveis. A decisão de iniciá-la baseia-se na identificação de fatores de risco significativos. As indicações clássicas para a Profilaxia de Úlceras de Estresse (PUE) incluem:
- Ventilação mecânica por mais de 48 horas.
- Coagulopatia (plaquetas < 50.000/mm³ ou INR > 1,5).
- Histórico de úlcera péptica ou sangramento gastrointestinal no último ano.
- Lesão cerebral traumática ou lesão medular.
- Grandes queimados.
As estratégias de prevenção envolvem terapia medicamentosa e suporte nutricional.
Opções de Profilaxia
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Terapia Medicamentosa: O objetivo é suprimir a produção de ácido gástrico.
- Inibidores da Bomba de Prótons (IBPs): Omeprazol e pantoprazol são os agentes mais potentes e a primeira escolha para pacientes de alto risco.
- Antagonistas dos Receptores H2 (Bloqueadores H2): Ranitidina e famotidina são alternativas eficazes.
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Nutrição Enteral Precoce: Uma estratégia de enorme eficácia é a manutenção da dieta por via enteral. Ela aumenta o fluxo sanguíneo para a mucosa gástrica e funciona como um tampão, neutralizando o ácido. A combinação de um agente farmacológico com a instituição da dieta enteral precoce é a abordagem padrão.
É crucial que a indicação da profilaxia seja criteriosa, focada nos pacientes que realmente se beneficiam, pois a supressão ácida desnecessária pode ter outras implicações, como a alteração do microbioma gástrico.
Dominar a diferença entre as úlceras de Curling e Cushing é essencial para qualquer profissional que atue com pacientes críticos. De um lado, temos uma lesão causada pela falha das defesas do estômago devido à isquemia sistêmica; de outro, um ataque direto pela hiperacidez de origem neurológica. Essa distinção fisiopatológica guia não apenas o entendimento da doença, mas também a percepção do risco associado a cada condição de base. Em última análise, reconhecer os fatores de risco e aplicar a profilaxia de forma criteriosa e precoce é uma das intervenções mais importantes para prevenir complicações e melhorar o desfecho desses pacientes vulneráveis.
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