No universo da obstetrícia, poucas condições exigem tanto planejamento, precisão e conhecimento quanto o acretismo placentário. Longe de ser apenas um termo técnico, o Espectro da Placenta Acreta (EPA) representa um dos maiores desafios da gestação moderna, com implicações diretas na segurança e na vida da mãe. Este guia foi elaborado com o rigor de um editor chefe para ir além das definições superficiais. Nosso objetivo é capacitar gestantes e profissionais da saúde com informações claras e acionáveis, desmistificando os riscos, detalhando o processo diagnóstico e explicando por que uma abordagem planejada e multidisciplinar não é apenas a melhor prática — é a única prática segura.
O Que É o Espectro da Placenta Acreta e Seus Graus de Gravidade
O acretismo placentário, hoje mais precisamente chamado de Espectro da Placenta Acreta (EPA) ou Placenta Accreta Spectrum (PAS), é uma das complicações mais graves da gestação, definida como uma aderência anormal e excessivamente profunda da placenta à parede do útero.
Para entender o problema, é preciso visualizar o processo normal. Após a fecundação, a placenta se implanta em uma camada interna do útero preparada para a gestação, a decídua. Essa camada funciona como uma interface segura, permitindo trocas vitais, mas garantindo que a placenta se separe facilmente após o nascimento do bebê — um processo chamado dequitação.
No EPA, esse mecanismo falha. Geralmente devido a um defeito na decídua, muitas vezes em locais de cicatrizes uterinas prévias (como de uma cesariana), a placenta não encontra seu limite natural. As células placentárias (trofoblastos) penetram de forma descontrolada e se fixam diretamente na camada muscular do útero, o miométrio.
A gravidade da condição é classificada de acordo com a profundidade dessa invasão, seguindo também a padronização da Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia (FIGO):
- Placenta Acreta (FIGO Grau 1): É a forma mais comum. As vilosidades placentárias se aderem diretamente ao miométrio, mas não o invadem.
- Placenta Increta (FIGO Grau 2): As vilosidades invadem o músculo uterino (miométrio).
- Placenta Percreta (FIGO Grau 3): É a forma mais grave. A placenta atravessa toda a espessura do miométrio, podendo atingir a superfície externa do útero (serosa) e até mesmo invadir órgãos adjacentes, como a bexiga (Grau 3b) ou outros tecidos pélvicos (Grau 3c).
O grande perigo do EPA se manifesta no momento do parto. A tentativa de remover manualmente uma placenta tão firmemente aderida resulta em uma hemorragia pós-parto (HPP) maciça e de difícil controle, colocando a vida da mãe em risco iminente. Por essa razão, o diagnóstico preciso e o planejamento do parto são cruciais para evitar uma catástrofe.
Principais Fatores de Risco: Placenta Prévia e Cirurgias Uterinas Anteriores
O Espectro da Placenta Acreta não surge aleatoriamente. Ele está fortemente associado a alterações na estrutura do útero que criam um ambiente propício para a fixação perigosamente profunda da placenta. Os dois principais protagonistas são a placenta prévia e a presença de cicatrizes uterinas.
A Combinação Perigosa: Placenta Prévia em um Útero Cicatrizado
A correlação mais forte para o desenvolvimento do EPA é a coexistência de placenta prévia e um histórico de cirurgias uterinas, principalmente a cesárea.
- Placenta Prévia: É a condição em que a placenta se implanta na parte inferior do útero, cobrindo total ou parcialmente o colo uterino.
- O Papel da Cicatriz: Uma cirurgia como a cesárea deixa uma cicatriz no miométrio. Essa área cicatricial não possui a camada protetora normal (decídua) que serve como barreira para a implantação placentária.
- A Invasão Anormal: Quando uma placenta prévia se implanta exatamente sobre essa cicatriz, suas vilosidades não encontram a barreira habitual e invadem o tecido cicatricial, penetrando profundamente no músculo uterino.
A regra é clara: O risco de EPA aumenta drasticamente com o número de cesáreas prévias, especialmente em mulheres que também desenvolvem placenta prévia. Uma gestante com múltiplas cesáreas anteriores e diagnóstico de placenta prévia deve ser investigada para EPA como prioridade máxima.
Fatores de Risco Detalhados
Embora a cesárea seja o fator mais conhecido, qualquer procedimento que possa resultar em uma cicatriz na cavidade uterina aumenta o risco. Os principais fatores incluem:
- Cesáreas Anteriores (Iterativas): Este é o fator de risco número um.
- Curetagem Uterina: Procedimentos de raspagem do útero, frequentemente realizados após abortos.
- Miomectomia: A remoção cirúrgica de miomas, especialmente aqueles que invadem a cavidade uterina.
- Irradiação Pélvica Prévia: Tratamentos com radioterapia na região pélvica.
- Outras Condições: A Síndrome de Asherman (aderências cicatriciais dentro do útero) e a presença de leiomiomas submucosos.
A identificação desses fatores de risco durante o pré-natal é fundamental, pois permite que a equipe médica se prepare adequadamente para um parto de altíssimo risco.
Diagnóstico Pré-Natal: O Papel da Ultrassonografia e da Ressonância Magnética
O diagnóstico do EPA antes do parto é um dos pilares para um manejo seguro, permitindo o planejamento cirúrgico e a mobilização de uma equipe multidisciplinar. A investigação se baseia fundamentalmente em métodos de imagem, especialmente em gestantes com os fatores de risco já mencionados.
Ultrassonografia com Doppler: A Ferramenta de Rastreio Essencial
A ultrassonografia (USG) é o método de primeira linha para investigar a suspeita de EPA. É um exame acessível, seguro e que, nas mãos de um operador experiente, oferece alta acurácia. O uso do mapeamento com Doppler colorido é crucial para avaliar o fluxo sanguíneo e a vascularização na interface entre a placenta, o útero e os órgãos adjacentes.
Os achados ultrassonográficos clássicos que levantam a suspeita incluem:
- Presença de múltiplas lacunas placentárias: Espaços vasculares irregulares, com aspecto de "queijo suíço", dentro da placenta.
- Perda ou irregularidade do espaço livre retroplacentário: Desaparecimento da zona escura que normalmente separa a placenta do músculo uterino.
- Afinamento do miométrio: A camada muscular sob a placenta pode se tornar extremamente fina (menos de 1 mm).
- Ruptura da linha entre a bexiga e a serosa uterina: Sugere invasão da bexiga.
- Vascularização anormal na interface útero-bexiga: Vasos sanguíneos que cruzam do útero para a parede da bexiga.
Ressonância Magnética (RM): Refinando o Diagnóstico e o Planejamento Cirúrgico
Embora a USG seja a principal ferramenta de rastreio, a Ressonância Magnética (RM) é um exame complementar valioso, indicado para refinar o diagnóstico e guiar a estratégia cirúrgica, especialmente em casos duvidosos ou quando a placenta tem localização posterior. O maior trunfo da RM é determinar com maior precisão a profundidade e a extensão da invasão, diferenciando entre acreta, increta e percreta e avaliando se órgãos vizinhos foram atingidos. Essa informação é vital para o planejamento cirúrgico.
Estratégias de Manejo e a Importância da Equipe Multidisciplinar
O manejo bem-sucedido do EPA é o resultado de um planejamento meticuloso e da atuação coordenada de uma equipe altamente experiente. A abordagem isolada é insuficiente e arriscada.
O Planejamento: Centro Terciário e Equipe Coordenada
A primeira e mais crucial etapa é garantir que o parto ocorra em um hospital terciário, que possui infraestrutura adequada (banco de sangue, UTI) e uma equipe multidisciplinar. A equipe idealmente inclui:
- Obstetra experiente em cirurgias de alta complexidade.
- Anestesista preparado para manejo de hemorragia maciça.
- Urologista e/ou Cirurgião Geral se houver suspeita de invasão de outros órgãos.
- Radiologista Intervencionista para procedimentos de controle de sangramento.
- Neonatologista para cuidar do bebê, que provavelmente nascerá prematuro.
A Conduta Padrão: Cesárea Programada com Histerectomia
A estratégia mais segura e recomendada é a realização de uma cesárea programada seguida de uma histerectomia puerperal (a remoção cirúrgica do útero).
- Momento do Parto: A cirurgia é agendada de forma eletiva, entre 34 e 36 semanas de gestação, para equilibrar a maturidade fetal com o risco de um parto de emergência.
- A Técnica Cirúrgica Crucial: O ponto central é a decisão de deixar a placenta in situ. A principal diretriz é não tentar remover a placenta após o nascimento do bebê. Em vez disso, o cirurgião realiza a retirada do feto e, em seguida, procede com a histerectomia, removendo o útero com a placenta ainda aderida.
- O Que NÃO Fazer: Manobras padrão como massagem uterina, uso de ocitocina, remoção manual forçada ou curetagem são absolutamente contraindicadas. Elas não funcionam, pois o problema é uma invasão física, e a tentativa de manipulação pode desencadear a hemorragia catastrófica que o planejamento visa evitar.
Tratamento Conservador: Uma Opção de Exceção
Em situações muito específicas e para mulheres com forte desejo de fertilidade futura, pode-se considerar o tratamento conservador, que consiste em deixar a placenta no útero para ser reabsorvida. No entanto, essa estratégia carrega riscos significativos de hemorragia tardia e infecção, devendo ser uma decisão cuidadosamente ponderada entre a equipe e a paciente.
Compreender o Espectro da Placenta Acreta é o primeiro passo para um desfecho seguro. A mensagem central deste guia é clara: o risco pode ser alto, mas com diagnóstico precoce, identificação de fatores de risco e um manejo planejado em um centro de referência com uma equipe multidisciplinar, é possível transformar um cenário potencialmente perigoso em um procedimento controlado e seguro. O conhecimento capacita a paciente a buscar o cuidado adequado e prepara a equipe de saúde para oferecer a melhor resposta possível.
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