No complexo universo da cardiologia, poucos tópicos são tão fundamentais e, ao mesmo tempo, tão repletos de nuances quanto os bloqueios atrioventriculares (BAV). Compreender a interrupção da comunicação elétrica do coração não é apenas um exercício acadêmico; é uma habilidade clínica essencial que impacta diretamente o diagnóstico, a estratificação de risco e a vida do paciente. Este guia foi elaborado com um propósito claro: desmistificar os BAVs, transformando traçados de ECG aparentemente complexos em informações claras e acionáveis. Da sutil lentidão do BAV de 1º grau à dramática dissociação do bloqueio total, vamos navegar juntos por cada tipo, seus achados característicos e as abordagens terapêuticas que definem o prognóstico.
O que são Bloqueios Atrioventriculares (BAV) e Quais os Sintomas?
Imagine o sistema elétrico do coração como uma via expressa bem coordenada. O impulso elétrico nasce nos átrios (câmaras superiores) e viaja rapidamente para os ventrículos (câmaras inferiores), garantindo que eles se contraiam de forma sincronizada. O Bloqueio Atrioventricular (BAV) ocorre quando há uma falha nessa comunicação — um "engarrafamento" ou interrupção na "estrada" elétrica que conecta os átrios aos ventrículos, o nó atrioventricular (nó AV).
Como resultado, os ventrículos não recebem o comando para contrair no momento certo, ou simplesmente não o recebem. A consequência mais direta é a bradicardia, uma frequência cardíaca mais lenta que o normal. Quando o coração bate muito devagar, ele pode não conseguir bombear sangue suficiente para atender às necessidades do corpo.
A apresentação clínica varia enormemente. Muitos indivíduos, especialmente com bloqueios de baixo grau, podem ser completamente assintomáticos. No entanto, quando os sintomas aparecem, eles geralmente estão ligados à redução do fluxo sanguíneo para o cérebro e outros órgãos:
- Bradicardia: Frequência cardíaca persistentemente baixa, que é o achado central.
- Tontura e Pré-síncope: Sensação de cabeça leve ou de que se vai desmaiar.
- Síncope (Desmaio): Perda súbita e transitória da consciência, um dos sintomas mais alarmantes.
- Fadiga e Fraqueza: Cansaço desproporcional, especialmente durante atividades físicas.
- Dispneia (Falta de Ar): Pode ocorrer em repouso ou aos esforços.
- Dor Torácica ou Desconforto: Em alguns casos, a bradicardia severa pode mimetizar os sintomas de angina.
- Confusão Mental ou Palpitações: Sensação de batimentos cardíacos irregulares ou falhas.
Em pacientes com BAV de terceiro grau, um sinal clínico clássico, embora nem sempre presente, é a "onda A em canhão" na veia jugular, que ocorre quando o átrio se contrai contra a válvula tricúspide fechada. É fundamental reconhecer que a presença de hipotensão, alteração do nível de consciência, síncope ou dor torácica em um paciente com bradicardia é um sinal de alerta que exige intervenção imediata.
Classificação dos BAVs: Entendendo os Graus de Severidade
Para compreender a gravidade e o manejo dos BAVs, é fundamental entender sua classificação em graus. Ela reflete uma progressão na falha de condução elétrica, com implicações prognósticas e terapêuticas radicalmente diferentes.
Bloqueio Atrioventricular de 1º Grau: O Atraso Constante
Esta é a forma mais branda. Pense nela mais como um "atraso" do que um "bloqueio". Todos os impulsos atriais são conduzidos aos ventrículos, porém de forma mais lenta.
- No Eletrocardiograma (ECG): O diagnóstico é feito pela medição do intervalo PR, que estará consistentemente aumentado e fixo, com duração superior a 200 milissegundos (ms). Apesar do atraso, a relação átrio-ventrículo é mantida em 1:1 (toda onda P é seguida por um complexo QRS).
- Significado Clínico: Geralmente é benigno, assintomático e não costuma evoluir.
Bloqueio Atrioventricular de 2º Grau: A Falha Intermitente
Neste grau, a comunicação falha de forma intermitente. Alguns impulsos atriais simplesmente não conseguem atravessar o nó AV.
- No Eletrocardiograma (ECG): A marca registrada é a presença de ondas P bloqueadas, ou seja, ondas P que não são seguidas por um complexo QRS.
- Subtipos: A forma como essa falha ocorre divide o BAV de 2º grau em Mobitz I e Mobitz II, uma distinção crucial que detalharemos a seguir, pois seus prognósticos são muito diferentes.
Bloqueio Atrioventricular de 3º Grau ou BAV Total (BAVT): A Dissociação Completa
Este é o tipo mais severo, representando uma emergência médica. Ocorre um verdadeiro "divórcio elétrico" entre as câmaras cardíacas. Nenhum impulso atrial é conduzido aos ventrículos.
- No Eletrocardiograma (ECG): O achado clássico é a dissociação atrioventricular completa. As ondas P (ritmo atrial) e os complexos QRS (ritmo ventricular) não possuem qualquer relação entre si. As ondas P ocorrem em uma frequência regular (geralmente 60-100 bpm), e os complexos QRS ocorrem em outra frequência, também regular, porém muito mais lenta (geralmente < 40 bpm).
- O Ritmo de Escape: Como os ventrículos não recebem estímulos de cima, um foco secundário de marcapasso assume o comando. Este ritmo de escape determina o prognóstico:
- Juncional: Gera um complexo QRS estreito e uma frequência cardíaca mais alta (40-60 bpm). Prognóstico ligeiramente melhor.
- Idioventricular: Gera um complexo QRS largo, uma frequência muito baixa (<40 bpm) e indica um bloqueio mais grave e instável.
BAV de 2º Grau: A Diferença Crucial entre Mobitz I (Wenckebach) e Mobitz II
No BAV de 2º grau, a condução é intermitente: alguns impulsos atriais chegam aos ventrículos, e outros não. A forma como essa falha ocorre divide o BAV de 2º grau em dois subtipos com prognósticos e abordagens terapêuticas radicalmente diferentes.
BAV de 2º Grau Mobitz I (Fenômeno de Wenckebach)
Este é o tipo mais comum e geralmente mais benigno. Sua marca registrada no ECG é o fenômeno de Wenckebach:
- Prolongamento Progressivo do Intervalo PR: O intervalo PR aumenta gradualmente a cada ciclo cardíaco, como se o nó AV ficasse progressivamente "cansado".
- Bloqueio Previsível: Após uma sequência de prolongamentos, um impulso atrial é finalmente bloqueado (onda P sem QRS).
- "Reset" do Ciclo: Após a pausa, o ciclo recomeça com um intervalo PR mais curto.
Por ser um bloqueio geralmente localizado no próprio nó AV, o Mobitz I tem baixo risco de evoluir para um bloqueio completo e, em muitos casos, não requer tratamento específico, a menos que o paciente apresente sintomas.
BAV de 2º Grau Mobitz II
O Mobitz II é menos comum, porém clinicamente muito mais preocupante. Ele representa uma doença mais grave no sistema de condução, geralmente localizada abaixo do nó AV (sistema His-Purkinje).
- Intervalo PR Fixo e Constante: Nos batimentos que são conduzidos, o intervalo PR permanece inalterado.
- Bloqueio Súbito e Inesperado: De forma abrupta e imprevisível, uma onda P simplesmente não é conduzida.
- Alto Risco de Progressão: Por indicar uma falha no sistema de "backup" do coração, o Mobitz II tem um risco significativo de evoluir para um BAV de 3º grau, podendo levar a síncope e instabilidade hemodinâmica grave.
A distinção é fundamental: Mobitz I (Wenckebach) geralmente significa observação, enquanto Mobitz II frequentemente indica a necessidade de um marcapasso cardíaco definitivo, mesmo em pacientes assintomáticos.
Causas Comuns e Fatores de Risco para os Bloqueios AV
A etiologia dos BAVs é diversa, e compreender a causa subjacente é fundamental para definir a melhor abordagem terapêutica.
1. Doença Degenerativa (Fibrose Idiopática) A causa mais comum, especialmente em idosos, é a fibrose e esclerose do sistema de condução com o envelhecimento. Esse processo pode levar a BAVs de alto grau, como Mobitz II e BAVT.
2. Doença Isquêmica do Coração Um infarto agudo do miocárdio (IAM), particularmente o de parede inferior, é um fator de risco clássico. A artéria coronária direita irriga o nó AV em 90% das pessoas, e sua oclusão pode causar um bloqueio, que geralmente é transitório e se resolve com a reperfusão.
3. Causas Farmacológicas (Iatrogênicas) Muitos BAVs são causados ou agravados por medicamentos. É crucial revisar a lista de medicações do paciente, especialmente:
- Betabloqueadores (ex: Metoprolol, Propranolol)
- Bloqueadores dos canais de cálcio não diidropiridínicos (ex: Verapamil, Diltiazem)
- Outros: Digoxina e Amiodarona.
4. Outras Causas Relevantes
- Causas Congênitas: Pode estar associado a doenças autoimunes maternas, como o lúpus (devido a anticorpos anti-Ro/SSA), ou a malformações estruturais.
- Pós-operatório de Cirurgia Cardíaca: A manipulação cirúrgica próxima ao sistema de condução pode causar BAV.
- Doenças Infecciosas e Inflamatórias: Doença de Lyme, endocardite, miocardite e Doença de Chagas.
- Doenças Infiltrativas: Amiloidose e sarcoidose.
Tratamento dos Bloqueios Atrioventriculares: De Atropina ao Marcapasso
A abordagem terapêutica é altamente individualizada, dependendo do tipo de bloqueio, dos sintomas e da estabilidade hemodinâmica.
1. Observação e Manejo de Causas Reversíveis
O BAV de 1º grau e o BAV de 2º grau Mobitz I assintomático geralmente não necessitam de intervenção. A conduta consiste em observação clínica e suspensão de fármacos que possam deprimir o nó AV. Se a causa for reversível (ex: isquemia), o tratamento da condição de base é prioritário.
2. Tratamento Farmacológico na Urgência: O Papel da Atropina
Para pacientes com bradicardia sintomática (hipotensão, síncope), a primeira linha é a atropina. Ela bloqueia a ação do nervo vago, aumentando a frequência cardíaca. Sua eficácia é maior nos bloqueios localizados no nó AV (BAV 1º grau, Mobitz I). A falta de resposta à atropina, comum no Mobitz II e BAVT, é um sinal de alerta para a necessidade de suporte elétrico.
3. O Marcapasso: A Solução Definitiva para BAVs Avançados
Quando o BAV é avançado, sintomático ou persistente, o tratamento de escolha é o implante de um marcapasso.
- Marcapasso Temporário: Usado em emergências para estabilizar o paciente enquanto se aguarda a resolução da causa ou o implante do dispositivo definitivo.
- Marcapasso Definitivo: É a terapia padrão para BAVs de alto grau e irreversíveis. As principais indicações incluem:
- BAV de 3º Grau (BAVT), independentemente dos sintomas.
- BAV de 2º Grau Mobitz II, mesmo em pacientes assintomáticos.
- BAV de 2º Grau Mobitz I sintomático, quando os sintomas são claramente atribuíveis ao bloqueio.
- BAV persistente após um evento agudo (como IAM ou cirurgia cardíaca), após um período de observação para avaliar a reversibilidade.
Em casos de diagnóstico incerto ou síncope de origem indeterminada, um estudo eletrofisiológico (EEF) pode ser indicado para localizar com precisão o nível do bloqueio e guiar a terapia.
Dominar os bloqueios atrioventriculares é ir além da simples leitura de um ECG; é traduzir padrões elétricos em decisões clínicas que protegem o paciente. Desde a vigilância atenta de um BAV de 1º grau até a indicação urgente de um marcapasso em um BAVT, cada passo é guiado por uma compreensão clara da fisiopatologia e do risco. Esperamos que este guia tenha fortalecido sua capacidade de identificar, classificar e entender o manejo dessas condições cruciais.
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