A Peritonite Bacteriana Espontânea (PBE) representa um desafio crítico no manejo de pacientes com doença hepática avançada e ascite, exigindo diagnóstico ágil e tratamento preciso para evitar desfechos graves. Este guia essencial foi elaborado para capacitar você, profissional de saúde, com um conhecimento abrangente e atualizado sobre a PBE, desde sua fisiopatologia e fatores de risco até as nuances do diagnóstico diferencial, as estratégias terapêuticas farmacológicas mais eficazes, incluindo o papel vital da albumina, e os protocolos de profilaxia primária e secundária. Navegue conosco por este material completo e otimize o cuidado aos seus pacientes, transformando conhecimento em melhores prognósticos.
Compreendendo a Peritonite Bacteriana Espontânea (PBE): Definição, Causas e Fatores de Risco
A Peritonite Bacteriana Espontânea (PBE) é uma complicação séria e potencialmente fatal, caracterizada pela infecção do líquido ascítico – o acúmulo de fluido na cavidade abdominal – na ausência de um foco infeccioso intra-abdominal óbvio, como uma perfuração intestinal ou um abscesso. Esta condição é particularmente prevalente em pacientes com cirrose hepática avançada e ascite, mas também pode ocorrer em outros contextos, como na síndrome nefrótica. Compreender sua definição, os mecanismos por trás de seu desenvolvimento e os fatores que aumentam sua probabilidade é crucial para o diagnóstico precoce e manejo adequado.
O Que Define a PBE?
A PBE é definida pela presença de uma resposta inflamatória no líquido ascítico, evidenciada por uma contagem de células polimorfonucleares (PMN) ≥ 250/mm³. Frequentemente, a cultura do líquido ascítico revela o crescimento de um único tipo de bactéria, caracterizando uma infecção monobacteriana. É fundamental diferenciar a PBE de peritonites secundárias, que possuem uma fonte de infecção identificável e requerem abordagens terapêuticas distintas, como veremos adiante.
A Jornada da Bactéria: Patogênese e Translocação Bacteriana
O mecanismo central implicado na patogênese da PBE é a translocação bacteriana. Este processo envolve a passagem de bactérias viáveis, predominantemente da flora intestinal, através da barreira mucosa do intestino para os linfonodos mesentéricos e, subsequentemente, para a corrente sanguínea e a cavidade peritoneal, infectando o líquido ascítico.
Diversos fatores contribuem para a translocação bacteriana em pacientes vulneráveis, como os cirróticos:
- Alterações na barreira intestinal: A hipertensão portal, comum na cirrose, pode levar a edema da mucosa intestinal e aumento da sua permeabilidade.
- Supercrescimento bacteriano intestinal: Desequilíbrios na flora intestinal podem favorecer a proliferação de bactérias patogênicas.
- Disfunção do sistema imunológico: Pacientes com cirrose frequentemente apresentam comprometimento da imunidade local e sistêmica, dificultando a eliminação das bactérias que translocam.
Os Agentes Infecciosos Mais Comuns
A PBE é tipicamente uma infecção monomicrobiana. Os agentes etiológicos mais frequentemente isolados variam ligeiramente dependendo da população de pacientes:
- Em adultos, especialmente com cirrose:
- Bactérias Gram-negativas entéricas são as principais culpadas, com destaque para:
- Escherichia coli (E. coli): O agente mais comum.
- Klebsiella pneumoniae.
- Bactérias Gram-positivas, como espécies de Streptococcus e Enterococcus, também podem ser encontradas, embora com menor frequência.
- Bactérias Gram-negativas entéricas são as principais culpadas, com destaque para:
- Em crianças com síndrome nefrótica:
- Streptococcus pneumoniae (pneumococo) é o agente etiológico predominante. Isso se deve, em parte, à perda urinária de imunoglobulinas e componentes do sistema complemento, que tornam esses pacientes mais suscetíveis a infecções por bactérias encapsuladas.
Fatores que Aumentam a Vulnerabilidade à PBE
Diversas condições e características podem aumentar significativamente o risco de um indivíduo desenvolver PBE:
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Cirrose Hepática: É o fator de risco mais importante.
- Gravidade da doença hepática: Pacientes com cirrose avançada (classificação de Child-Pugh B ou C, ou MELD elevado) têm um risco substancialmente maior.
- Concentração de Proteínas no Líquido Ascítico: Níveis baixos de proteína total no líquido ascítico (tipicamente < 1,0 g/dL ou < 1,5 g/dL) são um fator de risco crítico. A proteína no líquido ascítico, incluindo opsoninas, desempenha um papel na defesa contra infecções. Sua baixa concentração reduz a capacidade de opsonização e fagocitose de bactérias.
- Histórico Prévio de PBE: Um episódio anterior de PBE aumenta acentuadamente o risco de recorrência.
- Hemorragia Digestiva Alta Varicosa: Episódios de sangramento de varizes esofágicas ou gástricas podem precipitar a PBE, possivelmente por aumentar a translocação bacteriana.
- Outros marcadores de doença avançada: Níveis de bilirrubina sérica > 2,5 mg/dL.
- Desnutrição.
- Uso de Inibidores da Bomba de Prótons (IBPs): Alguns estudos sugerem uma associação entre o uso de IBPs e um risco aumentado de PBE, possivelmente devido a alterações na flora intestinal e no pH gástrico.
-
Síndrome Nefrótica:
- Pacientes com síndrome nefrótica, especialmente crianças, têm um risco aumentado de PBE.
- Isso ocorre devido à perda urinária de proteínas essenciais para a imunidade, como imunoglobulina G (IgG) e fatores do complemento, comprometendo a defesa contra infecções bacterianas, particularmente por microrganismos encapsulados como o Streptococcus pneumoniae.
- A presença de ascite nesses pacientes também é um pré-requisito para o desenvolvimento da PBE.
Compreender esses aspectos fundamentais da PBE é o primeiro passo para um manejo eficaz. A identificação de pacientes em risco, o reconhecimento precoce dos sinais e sintomas e a rápida instituição do tratamento são vitais para melhorar o prognóstico desta grave infecção.
Diagnóstico Preciso da PBE: Sinais Clínicos, Paracentese e Análise Laboratorial
Nesse contexto, um diagnóstico rápido e preciso da PBE torna-se crucial. A seguir, detalharemos os passos essenciais para sua identificação, desde os sinais clínicos até a análise laboratorial definitiva.
Sinais e Sintomas Clínicos: Fique Atento!
A apresentação clínica da PBE pode ser variada e, por vezes, sutil. Os sinais e sintomas mais comuns incluem:
- Febre: Frequentemente presente, mas sua ausência não descarta a PBE.
- Dor abdominal: Pode variar de leve desconforto a dor intensa e difusa. É um sintoma relevante, mas é crucial notar que a ausência de dor abdominal não exclui o diagnóstico de PBE, pois alguns pacientes, especialmente aqueles com estado geral mais comprometido, podem não referir dor.
- Piora do estado geral: Cansaço, mal-estar, confusão mental ou piora da encefalopatia hepática.
- Alterações gastrointestinais: Náuseas, vômitos ou íleo paralítico.
- Sinais de infecção sistêmica: Hipotensão, taquicardia.
Em pacientes com ascite, qualquer deterioração clínica inexplicada deve levantar a suspeita de PBE.
Paracentese: O Procedimento Diagnóstico Chave
A paracentese diagnóstica é o pilar para a confirmação da PBE. Este procedimento consiste na punção da cavidade abdominal para coleta do líquido ascítico.
- Indicação: Deve ser realizada em todos os pacientes com ascite e suspeita clínica de PBE, idealmente antes do início da antibioticoterapia, para não interferir nos resultados da cultura. Também é indicada em pacientes cirróticos internados por outras causas, mesmo sem sintomas claros de PBE, ou em casos de piora da função renal ou encefalopatia.
- Segurança: É um procedimento considerado seguro, mesmo em pacientes com coagulopatia associada à cirrose, não necessitando rotineiramente de correção prévia de plaquetas ou tempo de protrombina.
- Técnica: Geralmente realizada à beira do leito, guiada ou não por ultrassonografia, que pode auxiliar na localização do líquido e evitar complicações.
Análise Laboratorial do Líquido Ascítico: Decifrando os Achados
A análise do líquido ascítico obtido pela paracentese é crucial. Os dois exames fundamentais são:
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Contagem de Células Polimorfonucleares (PMN):
- Este é o critério diagnóstico mais importante e rápido para PBE.
- Uma contagem de PMN (predominantemente neutrófilos) ≥ 250 células/mm³ no líquido ascítico é diagnóstica de PBE, mesmo antes do resultado da cultura.
- Uma contagem de PMN inferior a 250 células/mm³ geralmente afasta o diagnóstico de PBE, embora existam exceções como a bacterascite (ver abaixo).
- A identificação de PMN ≥ 250 células/mm³ é suficiente para iniciar a antibioticoterapia empírica imediatamente.
-
Cultura do Líquido Ascítico:
- A cultura visa identificar o microrganismo causador e orientar a antibioticoterapia, caso necessário um ajuste.
- A PBE é caracteristicamente uma infecção monobacteriana, sendo a Escherichia coli o agente etiológico mais comum, seguida por outras enterobactérias como Klebsiella pneumoniae, e cocos Gram-positivos como Streptococcus pneumoniae.
- A cultura deve ser realizada inoculando o líquido ascítico em frascos de hemocultura à beira do leito para aumentar a sensibilidade.
- Ascite Neutrofílica (ou PBE com cultura negativa): Em cerca de 30-40% dos casos, pacientes com contagem de PMN ≥ 250 células/mm³ podem ter culturas negativas. Esta condição é conhecida como ascite neutrofílica e deve ser tratada como PBE.
- Bacterascite Monomicrobiana: Ocorre quando a cultura do líquido ascítico é positiva, mas a contagem de PMN é < 250 células/mm³. Pacientes sintomáticos devem ser tratados. Se assintomáticos, uma nova paracentese pode ser considerada.
Outros Parâmetros e Diagnóstico Diferencial:
Embora a contagem de PMN e a cultura sejam centrais, outros parâmetros do líquido ascítico podem ser úteis, principalmente para o diagnóstico diferencial com a Peritonite Bacteriana Secundária (PBS). A PBS ocorre devido a uma fonte intra-abdominal de infecção (ex: perfuração intestinal) e geralmente requer abordagem cirúrgica. Sinais que sugerem PBS em vez de PBE incluem:
- Cultura polimicrobiana (múltiplos tipos de bactérias).
- Proteína total no líquido ascítico > 1 g/dL.
- Glicose no líquido ascítico < 50 mg/dL.
- DHL (desidrogenase lática) no líquido ascítico elevada (geralmente acima do limite superior da normalidade do soro).
Níveis elevados de antígeno carcinoembrionário (CEA) e fosfatase alcalina no líquido ascítico também podem sugerir PBS por perfuração intestinal. Nesses casos, exames de imagem como a tomografia computadorizada de abdômen são fundamentais para identificar a fonte da infecção. A ultrassonografia abdominal, embora útil para confirmar a presença de ascite e guiar a paracentese, não diagnostica PBE por si só.
Em resumo, o diagnóstico da PBE repousa na suspeita clínica, seguida da paracentese com análise do líquido ascítico, onde a contagem de PMN ≥ 250 células/mm³ é o divisor de águas para o início imediato do tratamento.
Diagnóstico Diferencial: Distinguindo PBE da Peritonite Bacteriana Secundária (PBS)
No universo das infecções peritoneais em pacientes com ascite, especialmente aqueles com cirrose hepática, a distinção entre Peritonite Bacteriana Espontânea (PBE) e Peritonite Bacteriana Secundária (PBS) não é apenas um exercício acadêmico, mas uma etapa crítica que direciona condutas terapêuticas radicalmente diferentes e impacta diretamente o prognóstico do paciente. Enquanto a PBE é uma infecção primária do líquido ascítico sem um foco intra-abdominal identificável, a PBS tem uma origem bem definida e, frequentemente, uma gravidade maior.
O que é a Peritonite Bacteriana Secundária (PBS)?
A Peritonite Bacteriana Secundária (PBS) é uma inflamação do peritônio causada pela contaminação da cavidade abdominal a partir de um foco infeccioso intra-abdominal. Diferentemente da PBE, onde a infecção parece surgir "espontaneamente" no líquido ascítico, a PBS é uma consequência direta de eventos como:
- Perfuração de vísceras ocas: Como úlcera duodenal perfurada, apendicite supurada, diverticulite complicada ou perfuração intestinal.
- Ruptura de abscesso intra-abdominal.
- Deiscência de anastomose intestinal após cirurgia.
- Necrose intestinal.
- Processos infecciosos penetrantes.
Uma característica marcante da PBS é sua natureza polimicrobiana. A infecção geralmente envolve múltiplos microrganismos, tipicamente oriundos da flora gastrointestinal, incluindo bactérias Gram-negativas entéricas e anaeróbias. Esta pluralidade de agentes contrasta com a PBE, que é classicamente monobacteriana.
Sinais de Alerta e Critérios Diagnósticos para PBS
A suspeita de PBS deve surgir em pacientes com ascite e sinais de peritonite, especialmente se houver uma deterioração clínica rápida ou falha na resposta ao tratamento empírico para PBE. O diagnóstico diferencial se baseia em uma combinação de achados clínicos, laboratoriais (principalmente da análise do líquido ascítico) e, por vezes, de imagem.
Os critérios de Runyon são amplamente utilizados para sugerir PBS. A presença de pelo menos dois dos seguintes achados no líquido ascítico é altamente indicativa de PBS:
- Proteína total no líquido ascítico > 1 g/dL: Reflete um exsudato mais rico em proteínas, comum em processos inflamatórios secundários.
- Glicose no líquido ascítico < 50 mg/dL: As bactérias consomem glicose, e uma infecção mais agressiva e polimicrobiana tende a reduzir drasticamente seus níveis.
- LDH (Desidrogenase Lática) no líquido ascítico > Limite superior do valor normal do LDH sérico: Indica maior dano celular e inflamação.
Outras características que reforçam o diagnóstico de PBS incluem:
- Cultura do líquido ascítico polimicrobiana: Este é um dos diferenciadores mais fortes em relação à PBE.
- Contagem de leucócitos polimorfonucleares (PMN) no líquido ascítico: Embora o critério para PBE seja ≥ 250 células/mm³, na PBS, essa contagem é frequentemente muito mais elevada, podendo ultrapassar 10.000 células/mm³.
- Achados na coloração de Gram do líquido ascítico: A visualização de múltiplas formas bacterianas pode sugerir PBS.
- Aumento do Antígeno Carcinoembrionário (CEA) (> 5 ng/mL) e da Fosfatase Alcalina (> 240 UI/L) no líquido ascítico: Podem estar presentes em casos de perfuração intestinal.
A Importância da Distinção Clara
Diferenciar PBE de PBS é fundamental porque o manejo é distinto:
- PBE: O tratamento é primariamente clínico, com antibioticoterapia intravenosa (como cefalosporinas de terceira geração) e, em muitos casos, infusão de albumina para prevenir a síndrome hepatorrenal.
- PBS: Além da antibioticoterapia de amplo espectro (que deve cobrir anaeróbios e enterobactérias), a PBS frequentemente requer uma intervenção cirúrgica de urgência para corrigir a causa base (ex: sutura de perfuração, drenagem de abscesso, ressecção de segmento intestinal necrosado). A falha em identificar e tratar cirurgicamente um foco de PBS resulta em alta mortalidade.
Portanto, diante de um paciente com ascite e peritonite, se a análise do líquido ascítico (contagem de PMN ≥ 250 células/mm³) confirmar a infecção, a próxima etapa crucial é aplicar os critérios para diferenciar PBE de PBS. Se houver forte suspeita de PBS, exames de imagem como a tomografia computadorizada (TC) de abdômen são essenciais para localizar o foco infeccioso e planejar a abordagem cirúrgica. Atrasar o diagnóstico de PBS, confundindo-a com PBE e tratando apenas com antibióticos, pode ter consequências devastadoras.
Tratamento da PBE: Abordagem Farmacológica com Antibióticos e Albumina
O manejo eficaz da Peritonite Bacteriana Espontânea (PBE) é uma corrida contra o tempo. Uma vez estabelecida a suspeita clínica ou confirmada a presença de ≥ 250 polimorfonucleares (PMN)/mm³ no líquido ascítico, o tratamento deve ser iniciado imediatamente, mesmo antes da disponibilização dos resultados da cultura. A demora no início da terapia está associada a um pior prognóstico. A estratégia farmacológica se baseia em dois pilares fundamentais: a antibioticoterapia para erradicar a infecção e a administração de albumina para prevenir complicações renais graves.
Antibioticoterapia: A Linha de Frente Contra a Infecção
A escolha do antibiótico na PBE é, inicialmente, empírica, visando cobrir os patógenos mais frequentemente implicados, predominantemente bacilos Gram-negativos entéricos como Escherichia coli e Klebsiella pneumoniae.
- Cefalosporinas de Terceira Geração: São consideradas o tratamento de primeira linha.
- Cefotaxima: Administrada na dose de 2g por via intravenosa (IV) a cada 8 horas.
- Ceftriaxona: Administrada na dose de 2g IV a cada 24 horas (ou 1g IV a cada 12 horas). Ambas demonstram excelente penetração no líquido ascítico e alta eficácia. O tratamento geralmente se estende por 5 a 7 dias.
Mesmo em casos de ascite neutrocítica (contagem de PMN ≥ 250/mm³ com cultura do líquido ascítico negativa), a conduta terapêutica é a mesma da PBE com cultura positiva, pois a sensibilidade da cultura pode ser limitada. Embora a cultura do líquido ascítico deva ser sempre coletada antes do início dos antibióticos, seu resultado (que pode levar alguns dias) servirá para confirmar a sensibilidade do patógeno e, se necessário, direcionar a terapia, mas não deve atrasar o tratamento empírico.
Albumina Humana: Proteção Renal e Melhora da Sobrevida
A PBE frequentemente desencadeia uma cascata inflamatória que pode levar à disfunção circulatória e, consequentemente, à disfunção renal, incluindo a temida Síndrome Hepatorrenal (SHR). A administração de albumina humana intravenosa é uma medida crucial para mitigar esse risco.
- Objetivo: Reduzir a incidência de insuficiência renal e melhorar a sobrevida dos pacientes com PBE.
- Indicações: Recomenda-se a administração de albumina especialmente em pacientes com PBE que apresentam um ou mais dos seguintes critérios no momento do diagnóstico:
- Bilirrubina total > 4 mg/dL
- Creatinina sérica > 1 mg/dL
- Ureia > 40 mg/dL (ou Nitrogênio Ureico Sanguíneo - BUN > 20 mg/dL)
- Posologia Clássica:
- Dia 1: 1,5 g de albumina por kg de peso corporal.
- Dia 3: 1,0 g de albumina por kg de peso corporal.
A albumina atua como expansor plasmático, melhorando a volemia efetiva e a perfusão renal, além de possuir propriedades antioxidantes e anti-inflamatórias.
Medidas de Suporte e Condutas Inadequadas
Além da antibioticoterapia e da albumina, algumas medidas de suporte são importantes, enquanto outras condutas devem ser evitadas:
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Medidas de Suporte:
- Internação hospitalar: Fundamental para monitorização e tratamento adequado.
- Suspensão de diuréticos: Diuréticos (como espironolactona e furosemida) devem ser suspensos na fase aguda da PBE, pois podem agravar a disfunção renal.
- Suspensão de betabloqueadores não seletivos: Embora úteis na profilaxia de sangramento varicoso, podem ser prejudiciais na PBE aguda, comprometendo a resposta hemodinâmica.
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Condutas Inadequadas a Serem Evitadas:
- Atrasar o início do antibiótico: Não se deve aguardar resultados de cultura do líquido ascítico ou de exames de imagem como tomografia computadorizada para iniciar a antibioticoterapia se a contagem de PMN for ≥ 250/mm³.
- Uso de aminoglicosídeos como primeira linha: Devido à sua nefrotoxicidade, especialmente em pacientes cirróticos com função renal já comprometida, não são a escolha inicial.
- Uso de metronidazol isoladamente: O metronidazol tem espectro predominantemente contra anaeróbios e não cobre adequadamente os principais patógenos da PBE.
- Lactulose para tratar PBE: A lactulose é utilizada no manejo da Encefalopatia Hepática (EH), que pode ser um fator precipitante ou uma complicação da PBE. No entanto, a lactulose não trata a infecção peritoneal em si.
- Laparotomia exploradora: Este procedimento cirúrgico não tem indicação no tratamento da PBE, sendo reservado para casos de suspeita de peritonite secundária.
O manejo farmacológico correto e tempestivo da PBE, com antibióticos apropriados e o uso criterioso de albumina, é essencial para reduzir a morbimortalidade associada a esta grave complicação da cirrose hepática.
Prevenção da PBE: Estratégias de Profilaxia Primária e Secundária
A Peritonite Bacteriana Espontânea (PBE) é uma complicação grave e potencialmente fatal em pacientes com cirrose hepática e ascite. Felizmente, estratégias eficazes de profilaxia antibiótica podem reduzir significativamente o risco de desenvolvimento desta infecção. A abordagem preventiva divide-se em duas categorias principais: profilaxia primária, para pacientes de alto risco que nunca tiveram um episódio de PBE, e profilaxia secundária, para aqueles que já apresentaram a infecção e visam evitar recorrências.
Profilaxia Primária da PBE: Evitando o Primeiro Episódio
A profilaxia primária tem como objetivo impedir a ocorrência do primeiro episódio de PBE em pacientes cirróticos considerados de alto risco. As principais indicações incluem:
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Pacientes Cirróticos com Hemorragia Digestiva Alta (HDA):
- A HDA, especialmente por ruptura de varizes esofágicas, é um fator de risco significativo para PBE. A presença de sangue no trato digestivo favorece a proliferação bacteriana e a translocação bacteriana para o líquido ascítico.
- A profilaxia é mandatória para todo paciente cirrótico com HDA, mesmo na ausência de ascite clinicamente detectável, devido ao alto risco de complicações infecciosas e mortalidade.
- Regimes recomendados (geralmente por 7 dias):
- Norfloxacina: 400 mg a cada 12 horas, via oral. Indicada para pacientes menos graves, com via oral preservada (ex: Child-Pugh A).
- Ceftriaxona: 1g por dia, via intravenosa. Preferível em pacientes com cirrose avançada (Child-Pugh B/C), instabilidade hemodinâmica, vômitos ou outras contraindicações à via oral.
- Outras quinolonas orais (ex: ofloxacina) podem ser alternativas à norfloxacina em pacientes estáveis.
- Esta intervenção reduz não apenas a incidência de PBE, mas também o risco de ressangramento e a mortalidade geral.
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Profilaxia Primária Crônica em Pacientes de Alto Risco (sem HDA recente):
- Indicada para pacientes com ascite e um ou mais dos seguintes critérios, que denotam um risco elevado para o desenvolvimento de PBE:
- Proteína total no líquido ascítico (PTLA) < 1,0 g/dL. (Alguns protocolos consideram este critério isolado suficiente, especialmente em pacientes internados).
- PTLA < 1,5 g/dL associada a pelo menos um dos seguintes:
- Comprometimento da função hepática: Child-Pugh ≥ 9 PONTOS E Bilirrubina total ≥ 3 mg/dL.
- Comprometimento da função renal: Creatinina sérica ≥ 1,2 mg/dL, OU Ureia ≥ 53 mg/dL, OU Sódio sérico ≤ 130 mEq/L.
- Regime recomendado:
- Norfloxacina: 400 mg por dia, por tempo indeterminado ou enquanto persistirem os fatores de risco.
- Sulfametoxazol/trimetoprim (SMX/TMP): 800/160 mg por dia pode ser uma alternativa.
- É importante ressaltar que condições como encefalopatia hepática isolada, síndrome hepatorrenal isolada ou trombose de veia porta isolada não são, por si sós, indicações para profilaxia primária da PBE. A profilaxia também não é rotineiramente indicada para doença hepática alcoólica sem os critérios de risco mencionados.
- Indicada para pacientes com ascite e um ou mais dos seguintes critérios, que denotam um risco elevado para o desenvolvimento de PBE:
Profilaxia Secundária da PBE: Prevenindo Recorrências
Pacientes que já sobreviveram a um episódio de PBE apresentam um risco muito elevado de recorrência (até 70% em um ano). Portanto, a profilaxia secundária é fortemente recomendada e deve ser iniciada após a resolução do episódio infeccioso.
- Indicação: Qualquer paciente com histórico prévio de PBE.
- Objetivo: Prevenir novos episódios da infecção.
- Regimes antibióticos recomendados (uso contínuo e diário):
- Norfloxacina: 400 mg por dia.
- Ciprofloxacina: 500 mg por dia.
- Sulfametoxazol/trimetoprim (SMX/TMP): 800/160 mg por dia.
- Duração: A profilaxia secundária deve ser mantida indefinidamente ou até a melhora sustentada da ascite (por exemplo, após transplante hepático bem-sucedido ou melhora significativa da função hepática que leve à resolução da ascite). Não deve ser restrita a um período curto, como três meses, devido à alta e persistente taxa de recorrência.
Considerações Adicionais
- Uso de Inibidores de Bomba de Prótons (IBP): O uso crônico e, especialmente, em altas doses de IBPs tem sido associado em alguns estudos a um risco aumentado de desenvolvimento de PBE. Acredita-se que a supressão ácida gástrica possa alterar a microbiota intestinal e favorecer a translocação bacteriana. Portanto, o uso de IBPs em pacientes cirróticos deve ser criterioso, limitado às indicações clínicas claras e nas menores doses eficazes.
A implementação correta e individualizada das estratégias de profilaxia primária e secundária é um pilar fundamental no manejo do paciente com cirrose, contribuindo significativamente para a redução da morbimortalidade associada à PBE. A seleção do regime antibiótico e a decisão de iniciar a profilaxia devem sempre considerar o perfil de risco do paciente, a epidemiologia local de resistência bacteriana e as diretrizes clínicas atuais.
Manejo de Complicações e Considerações Especiais na PBE
A Peritonite Bacteriana Espontânea (PBE) é uma infecção grave que, para além do desafio infeccioso primário, pode desencadear uma cascata de complicações, exigindo um manejo clínico ágil, preciso e individualizado. Entre as mais temidas estão a Insuficiência Renal Aguda (IRA) e a progressão para a Síndrome Hepatorrenal (SHR). Adicionalmente, certas populações, como pacientes com síndrome nefrótica, apresentam particularidades que merecem atenção especial.
Combatendo a Insuficiência Renal Aguda (IRA) na PBE
A IRA é uma complicação frequente e de prognóstico reservado em pacientes com PBE. A disfunção renal pode ser precipitada pela própria infecção, pela resposta inflamatória sistêmica, pela vasodilatação esplâncnica e pelas alterações hemodinâmicas decorrentes. O manejo adequado é crucial e envolve:
- Otimização Volêmica e Hemodinâmica:
- Expansão Volêmica com Albumina: Esta é uma pedra angular no tratamento e na prevenção da IRA. A administração de albumina humana (dose usual de 1,5 g/kg no primeiro dia e 1,0 g/kg no terceiro dia, sempre calculada com base no peso do paciente) é fundamental. O objetivo é restaurar a volemia arterial efetiva, melhorar a perfusão renal e diminuir a ativação de sistemas vasoconstritores renais. A falta de expansão volêmica adequada é um fator de risco significativo para o desenvolvimento ou piora da IRA.
- Suspensão de Medicamentos Potencialmente Danosos:
- Diuréticos: Fármacos como furosemida e espironolactona devem ser temporariamente suspensos. Seu uso pode agravar a depleção volêmica e a função renal num cenário de inflamação sistêmica e instabilidade hemodinâmica.
- Betabloqueadores (ex: Propranolol): Também devem ser suspensos na fase aguda da PBE com IRA, devido ao risco de hipotensão, que pode ser exacerbada, comprometendo ainda mais a perfusão renal.
- Anti-hipertensivos (IECA/BRA): Embora possam ser nefroprotetores em contextos crônicos, os inibidores da enzima conversora de angiotensina (IECA) e os bloqueadores dos receptores da angiotensina II (BRA) podem precisar ser suspensos em casos de IRA, pois podem reduzir a pressão de filtração glomerular.
- Anti-inflamatórios Não Esteroidais (AINEs): Devem ser rigorosamente evitados devido ao seu potencial nefrotóxico.
Prevenção da Síndrome Hepatorrenal (SHR)
A PBE é um dos principais gatilhos para a SHR, uma forma de insuficiência renal funcional grave e progressiva em pacientes com doença hepática avançada e hipertensão portal. A principal estratégia de prevenção da SHR no contexto da PBE é a já mencionada administração intravenosa de albumina humana. Ao melhorar a hemodinâmica sistêmica e renal, a albumina reduz significativamente o risco de desenvolvimento desta temida complicação.
Outras Complicações Relevantes
- Encefalopatia Hepática (EH): A PBE é um dos fatores precipitantes mais comuns da EH. A infecção e a inflamação sistêmica podem levar ao acúmulo de toxinas que afetam a função cerebral. O tratamento da infecção subjacente (PBE) é fundamental para reverter ou controlar a EH. O manejo específico da EH inclui medidas como o uso de lactulose (para reduzir a absorção de amônia) e, em alguns casos, antibióticos não absorvíveis como a rifaximina. É crucial evitar a dieta por via oral em pacientes com EH que apresentam sonolência e confusão mental, devido ao alto risco de aspiração. Medicamentos como o paracetamol devem ser usados com extrema cautela ou evitados em pacientes com cirrose, especialmente na presença de alcoolismo, devido ao risco de hepatotoxicidade.
- Distúrbios Eletrolíticos: Hiponatremia e hipocalemia podem ocorrer ou se agravar, necessitando de correção cuidadosa.
Considerações em Populações Específicas: A Síndrome Nefrótica
Pacientes com síndrome nefrótica, mesmo na ausência de cirrose, apresentam um risco aumentado para o desenvolvimento de PBE. Esta vulnerabilidade está associada a:
- Perda urinária de proteínas: A proteinúria maciça leva à perda de imunoglobulinas (especialmente IgG) e fatores do complemento (como o fator B da via alternativa), comprometendo a capacidade de opsonização e defesa contra infecções, particularmente por bactérias encapsuladas.
- Ascite: Frequentemente presente na síndrome nefrótica, a ascite fornece um meio propício para a proliferação bacteriana.
Particularidades da PBE na Síndrome Nefrótica:
- Agente Etiológico: Diferentemente da PBE no paciente cirrótico (onde predominam bacilos Gram-negativos entéricos como Escherichia coli e Klebsiella pneumoniae), em pacientes com síndrome nefrótica, especialmente em crianças, o Streptococcus pneumoniae (pneumococo) é historicamente o agente etiológico mais comum. Bactérias Gram-negativas, como E. coli, também são causas importantes.
- Diagnóstico e Tratamento: O diagnóstico segue os mesmos critérios da PBE no cirrótico: análise do líquido ascítico com contagem de polimorfonucleares (PMN) ≥ 250 células/mm³ e cultura do líquido ascítico. O tratamento antibiótico empírico deve ser iniciado prontamente, cobrindo os patógenos mais prováveis, e ajustado conforme a epidemiologia local e os resultados de cultura e antibiograma.
A Importância de um Manejo Clínico Atento e Individualizado
É fundamental reforçar que o manejo da PBE e suas complicações deve ser sempre individualizado e proativo. Atrasos no diagnóstico e na instituição do tratamento – como aguardar resultados de cultura do líquido ascítico ou exames de imagem como a tomografia computadorizada para iniciar os antibióticos (cefalosporinas de terceira geração, como cefotaxima ou ceftriaxona) e a albumina – podem ter consequências graves e aumentar a mortalidade.
A laparotomia exploradora não é indicada na PBE primária, sendo reservada para os raros casos de forte suspeita de peritonite secundária. Um olhar clínico atento, a monitorização rigorosa da função renal, do estado hemodinâmico e do nível de consciência, juntamente com a pronta instituição das medidas terapêuticas corretas, são essenciais para um desfecho favorável nestes pacientes críticos.
Dominar o manejo da Peritonite Bacteriana Espontânea é um diferencial na prática clínica, impactando diretamente a sobrevida e a qualidade de vida de pacientes vulneráveis. Este guia buscou fornecer uma base sólida, desde a compreensão dos mecanismos da PBE, passando pela precisão diagnóstica que diferencia PBE de quadros secundários, até as estratégias terapêuticas e profiláticas mais atuais, sem esquecer o manejo de suas temidas complicações. A mensagem central é clara: a PBE exige vigilância constante, diagnóstico precoce e intervenção imediata.
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