No universo das complicações da cirrose hepática, poucas são tão traiçoeiras e urgentes quanto a Peritonite Bacteriana Espontânea (PBE). Esta infecção, que se instala silenciosamente no líquido ascítico, pode transformar um quadro clínico estável em uma emergência médica em questão de horas. Compreender seus sinais, muitas vezes sutis, e dominar os critérios para um diagnóstico rápido não é apenas um exercício acadêmico — é um passo fundamental para salvar vidas. Este guia foi elaborado para capacitar você, profissional de saúde ou estudante, a navegar com segurança por este desafio, desde a identificação das causas e sintomas até a diferenciação de quadros semelhantes e a implementação de estratégias que mudam o prognóstico.
O Que é PBE? Definição, Fisiopatologia e Etiologia
A Peritonite Bacteriana Espontânea, ou PBE, é uma infecção bacteriana aguda e grave que ocorre no líquido ascítico — o acúmulo de líquido na cavidade abdominal. O termo "espontânea" é fundamental, pois indica que a infecção se desenvolve sem uma fonte intra-abdominal evidente e cirurgicamente tratável, como uma perfuração intestinal, um abcesso ou uma diverticulite.
Esta condição é uma das complicações mais temidas e comuns em pacientes com cirrose hepática avançada e hipertensão portal, que são os principais fatores de risco para o desenvolvimento de ascite.
Como a Infecção Acontece? A Fisiopatologia da PBE
O mecanismo central por trás da PBE é a translocação bacteriana. Em condições normais, nosso intestino contém uma vasta população de bactérias mantidas sob controle pela barreira intestinal. No entanto, em pacientes com cirrose avançada, essa barreira se torna mais permeável.
Isso significa que bactérias, geralmente originárias do próprio intestino, conseguem "escapar" através da parede intestinal, alcançando os linfonodos e, eventualmente, a corrente sanguínea e o líquido ascítico. Dois fatores principais explicam por que a infecção se estabelece ali:
- Baixa Defesa Local: O líquido ascítico em pacientes com cirrose possui uma baixa concentração de proteínas (especificamente, albumina). Essas proteínas são essenciais para a opsonização, um processo de "marcação" das bactérias para que o sistema imune as reconheça e destrua. Com poucas proteínas, o líquido ascítico se torna um meio de cultura ideal, onde as bactérias encontram um ambiente propício para se multiplicar sem uma resposta imune eficaz.
- Alterações Circulatórias: A hipertensão portal, comum na cirrose, causa uma vasodilatação esplâncnica (dilatação dos vasos sanguíneos do intestino). Essa alteração na circulação não só contribui para a formação da ascite, mas também facilita a "fuga" das bactérias.
Os Agentes Causadores (Etiologia) e a Prevalência
Uma característica marcante da PBE é que ela é, na grande maioria das vezes, uma infecção monobacteriana, ou seja, causada por um único tipo de bactéria. Os principais agentes etiológicos são bactérias Gram-negativas provenientes do trato gastrointestinal.
Os mais comuns em adultos são:
- Escherichia coli (E. coli): O principal agente, responsável pela maioria dos casos.
- Klebsiella pneumoniae: Outro agente Gram-negativo frequente.
- Streptococcus pneumoniae e outros estreptococos também podem ser encontrados, mas com menor frequência.
É importante notar que a etiologia pode variar com a idade e a condição de base. Enquanto em adultos com cirrose a E. coli predomina, em crianças, especialmente aquelas com síndrome nefrótica (outra causa de ascite), o agente mais comum é o Streptococcus pneumoniae.
A PBE não é uma condição rara. Sua prevalência é estimada entre 1,5% a 3,5% em pacientes cirróticos ambulatoriais e salta para cerca de 10% em pacientes hospitalizados, representando uma causa significativa de descompensação, morbidade e mortalidade nesta população.
Quadro Clínico da PBE: Sinais e Sintomas a Observar
A apresentação clínica da PBE é notoriamente variável, o que pode tornar seu reconhecimento um verdadeiro desafio. Um paciente pode desde não apresentar sintoma algum até desenvolver um quadro grave e de rápida evolução. Essa diversidade de manifestações torna o alto índice de suspeita clínica fundamental para um diagnóstico precoce.
Sinais e Sintomas Clássicos
Embora nem todos os pacientes apresentem o quadro completo, a PBE é classicamente associada a uma tríade de sintomas. A presença de qualquer um deles em um paciente com cirrose e ascite deve acender um sinal de alerta imediato.
- Febre: Este é o achado clínico mais comum na PBE. Muitas vezes, trata-se de uma febre baixa (subfebril), mas qualquer elevação de temperatura sem outra causa aparente é altamente suspeita.
- Dor ou Desconforto Abdominal: A dor pode variar de uma sensação leve e difusa de "inchaço" a uma dor mais intensa. A sensibilidade do abdômen à palpação durante o exame físico é um achado importante.
- Aumento do Volume Abdominal: Um aumento súbito ou uma piora inexplicada da ascite pode ser um indicativo da inflamação peritoneal causada pela infecção.
Manifestações Sistêmicas e Sinais de Gravidade
A infecção do líquido ascítico pode desencadear uma resposta inflamatória sistêmica, levando a manifestações que indicam uma doença mais grave. Fique atento a:
- Alteração do Estado Mental: O surgimento súbito ou a piora de um quadro de encefalopatia hepática (confusão mental, sonolência, letargia) pode ser o único sinal de PBE, funcionando como um gatilho que descompensa a função cerebral.
- Hipotensão (Pressão Baixa): A queda da pressão arterial é um sinal de alarme que pode indicar o início de uma sepse, uma complicação grave que ameaça a vida.
- Piora da Função Renal: Uma das complicações mais temidas da PBE é o desenvolvimento de insuficiência renal aguda. A infecção pode comprometer drasticamente a função dos rins, piorando significativamente o prognóstico.
- Diarreia: Embora menos específico, é um sintoma gastrointestinal que pode estar presente.
A Infecção Silenciosa: PBE Assintomática
É fundamental ressaltar que uma parcela significativa dos pacientes pode ser completamente assintomática. Nesses casos, a infecção é frequentemente um achado incidental, descoberta durante uma paracentese diagnóstica realizada por outros motivos, como em exames de rotina durante uma hospitalização. Qualquer nova queixa ou piora clínica em um paciente com cirrose e ascite deve levantar a suspeita de PBE.
Diagnóstico da PBE: Critérios, Exames Laboratoriais e Confirmação
O pilar para a confirmação diagnóstica da PBE é a paracentese, um procedimento no qual uma amostra do líquido ascítico é coletada para análise laboratorial. A análise desse líquido é o que permite confirmar ou descartar a infecção e deve ser realizada em todo paciente com cirrose e ascite que apresente sinais de descompensação clínica.
O Critério Diagnóstico Central: Contagem de Polimorfonucleares (PMN)
O critério diagnóstico fundamental e universalmente aceito para a PBE é a contagem de células no líquido ascítico. A presença de uma infecção bacteriana no peritônio desencadeia uma resposta inflamatória, recrutando células de defesa, principalmente os neutrófilos.
- Critério de Confirmação: Uma contagem de polimorfonucleares (PMN) maior ou igual a 250 células/mm³ no líquido ascítico é o marcador definitivo para o diagnóstico de PBE.
Este achado, por si só, já é suficiente para iniciar o tratamento com antibióticos de forma empírica, dada a alta mortalidade associada à PBE não tratada.
O Papel da Cultura do Líquido Ascítico
Paralelamente à contagem celular, uma amostra do líquido ascítico é enviada para cultura. O objetivo é tentar isolar e identificar a bactéria responsável pela infecção e testar sua sensibilidade a diferentes antibióticos (antibiograma).
- Diagnóstico Clássico: A definição clássica de PBE combina a contagem de PMN com o resultado da cultura:
- Contagem de PMN ≥ 250/mm³
- E cultura monobacteriana positiva.
E se a Cultura for Negativa? A Ascite Neutrofílica
Uma situação muito comum na prática clínica é encontrar um paciente com contagem de PMN ≥ 250/mm³, mas cuja cultura do líquido ascítico resulta negativa, o que ocorre em até 40-60% dos casos.
- Ascite Neutrofílica: Esta condição, caracterizada por PMN ≥ 250/mm³ com cultura negativa, é clinicamente considerada e tratada como PBE. A ausência de crescimento bacteriano não exclui a infecção, pois pode ocorrer por baixa carga bacteriana ou uso prévio de antibióticos. O mais importante é a evidência da resposta inflamatória (o aumento dos PMN).
Diagnóstico Diferencial: PBE vs. Peritonite Bacteriana Secundária (PBS)
Quando um paciente com ascite apresenta sinais de infecção, o principal desafio é diferenciar a Peritonite Bacteriana Espontânea (PBE) de sua "irmã" mais complexa, a Peritonite Bacteriana Secundária (PBS). Essa distinção não é meramente acadêmica; ela dita condutas radicalmente diferentes, que podem variar de antibioticoterapia isolada a uma intervenção cirúrgica de emergência.
Enquanto a PBE é uma infecção monobacteriana que surge sem um foco infeccioso intra-abdominal, a PBS é consequência de uma perfuração de víscera oca ou de um abscesso. A análise do líquido ascítico é o campo de batalha onde essa diferenciação ocorre.
Pistas para o diagnóstico de PBE:
- Contagem de Polimorfonucleares (PMN): ≥ 250 células/mm³.
- Cultura do Líquido Ascítico: Tipicamente monobacteriana.
- Bioquímica: Alterações menos pronunciadas nos níveis de glicose, LDH e proteínas.
Sinais de Alerta para PBS (Critérios de Runyon): A suspeita de PBS deve ser levantada quando a análise do líquido ascítico revela pelo menos dois dos seguintes critérios:
- Proteína Total: > 1 g/dL.
- Glicose: < 50 mg/dL.
- LDH: Acima do limite superior da normalidade do soro.
Além disso, uma cultura polimicrobiana (múltiplos microrganismos) é um forte indicativo de PBS. Nesses casos, a realização de uma Tomografia Computadorizada de abdome é mandatória para identificar o foco infeccioso que necessitará de abordagem cirúrgica.
Prognóstico e a Importância da Profilaxia na PBE
A Peritonite Bacteriana Espontânea (PBE) é mais do que uma simples infecção; é um divisor de águas na jornada de um paciente com cirrose avançada. O prognóstico após um episódio de PBE é sério e sublinha a gravidade da doença hepática subjacente. Mesmo com a terapia antibiótica adequada, a PBE está associada a um risco significativo, pois frequentemente desencadeia outras complicações, como a lesão renal aguda.
Um dos maiores desafios após a recuperação é o alto risco de recorrência. Estima-se que até 70% dos pacientes que sobrevivem a um primeiro episódio podem apresentar uma nova infecção no período de um ano se nenhuma medida preventiva for tomada. Esse dado alarmante torna a profilaxia não apenas uma recomendação, mas um pilar essencial do cuidado contínuo.
A Importância Vital da Profilaxia
A profilaxia consiste no uso contínuo de antibióticos em baixas doses para prevenir a ocorrência (ou recorrência) da infecção em pacientes de alto risco. Seus benefícios incluem:
- Redução drástica do risco de recorrência: Pode reduzir a taxa de recorrência de 70% para cerca de 20% em um ano.
- Aumento da sobrevida: Ao prevenir novas infecções e suas complicações, a profilaxia demonstrou melhorar a sobrevida global.
- Prevenção de outras infecções bacterianas e redução de hospitalizações.
A profilaxia é indicada principalmente em duas situações:
- Profilaxia Secundária: Para todos os pacientes que sobreviveram a um episódio de PBE.
- Profilaxia Primária: Para pacientes que nunca tiveram PBE, mas são considerados de alto risco (ex: baixo nível de proteínas no líquido ascítico ou após hemorragia digestiva).
O manejo a longo prazo da PBE é um exemplo claro de como a medicina pode atuar de forma proativa, transformando um prognóstico sombrio em uma condição gerenciável e oferecendo aos pacientes uma chance real de viver com mais segurança e qualidade.
A jornada pelo diagnóstico e manejo da Peritonite Bacteriana Espontânea revela uma verdade central na medicina: a vigilância salva vidas. Reconhecer a PBE exige mais do que conhecimento técnico; demanda um alto índice de suspeita diante de qualquer descompensação em um paciente com cirrose e ascite. O critério de PMN ≥ 250 células/mm³ no líquido ascítico é o farol que guia a ação imediata, enquanto a diferenciação da peritonite secundária evita erros catastróficos. Mais importante ainda, a compreensão de que um episódio de PBE é um ponto de inflexão reforça o papel vital da profilaxia, transformando um prognóstico sombrio em uma condição gerenciável.
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