No universo da emergência, onde cada segundo conta, a reposição volêmica não é apenas um procedimento – é a linha de frente na batalha contra o choque e a falência de múltiplos órgãos. Dominar seus princípios, desde a abordagem inicial do ATLS até os cálculos precisos da Fórmula de Parkland, é uma competência não-negociável para qualquer profissional de saúde que atua no cuidado agudo. Este guia foi elaborado para ir além da simples memorização de fórmulas; nosso objetivo é fornecer um roteiro prático e atualizado que capacite você a tomar decisões rápidas, seguras e baseadas em evidências, transformando a teoria em ações que salvam vidas à beira do leito.
Princípios da Reposição Volêmica: O Que Fazer na Primeira Hora?
Na corrida contra o tempo que define o atendimento de emergência, poucas intervenções são tão cruciais quanto a reposição volêmica. Seja em um paciente vítima de trauma com hemorragia, um grande queimado ou em choque séptico, restaurar o volume circulante é um pilar fundamental para manter a perfusão dos órgãos. A "hora de ouro" após o evento agudo é a janela crítica onde uma reanimação volêmica adequada pode definir o prognóstico do paciente.
A abordagem inicial segue o mnemônico universalmente conhecido do ATLS (Advanced Trauma Life Support): o ABCDE. A reposição volêmica entra na etapa "C" de Circulação, mas sua implementação deve ocorrer simultaneamente à garantia das vias aéreas (A) e da respiração (B). A avaliação foca em identificar sinais de choque hipovolêmico: taquicardia, hipotensão, pele fria e pegajosa, enchimento capilar lento e alteração do nível de consciência.
A Escolha do Fluido: Cristaloides como Padrão-Ouro
Uma das primeiras e mais importantes decisões é a escolha do fluido. As diretrizes atuais, incluindo o ATLS, são enfáticas:
- Cristaloides Isotônicos: São a primeira linha de escolha. As soluções mais utilizadas são o Ringer Lactato e o Soro Fisiológico 0,9%. O Ringer Lactato é frequentemente preferido, especialmente em queimados e no trauma, por ser uma solução mais balanceada que ajuda a mitigar a acidose metabólica.
- Coloides (Ex: Albumina): O uso de soluções coloides na fase aguda do trauma, da sepse e das queimaduras é contraindicado. Estudos não demonstraram superioridade e, em cenários como o do grande queimado, o aumento da permeabilidade capilar pode fazer com que essas macromoléculas extravasem para o interstício, piorando o edema. A única exceção relevante são os hemocomponentes (sangue), considerados quando a resposta ao volume inicial é inadequada.
Protocolos ATLS: Doses e Acessos Iniciais
O protocolo ATLS estabelece diretrizes claras para a ação imediata:
- Acesso Venoso: O ideal é a obtenção de dois acessos venosos periféricos de grosso calibre (ex: 14G ou 16G). Se o acesso periférico não for possível rapidamente, o acesso intraósseo (IO) é a alternativa de escolha.
- Dose Inicial em Adultos: A recomendação é a infusão rápida de um bolus de 1000 mL de solução cristaloide aquecida. Aquecer o fluido é vital para prevenir a hipotermia, que compõe a "tríade letal do trauma" junto com a acidose e a coagulopatia.
- Dose Inicial em Crianças: A dose é ajustada pelo peso, sendo de 20 mL/kg de solução cristaloide em bolus.
Após a administração do bolus inicial, a reavaliação constante do paciente é mandatória. A resposta hemodinâmica ditará os próximos passos, que podem incluir cálculos mais complexos, como a Fórmula de Parkland para queimados.
A Fórmula de Parkland e as Diretrizes ATLS para Queimados
No manejo do paciente grande queimado, a reposição volêmica adequada é a pedra angular para prevenir o choque. A Fórmula de Parkland é a ferramenta clássica para estimar as necessidades de fluidos nas primeiras 24 horas, mas é crucial conhecê-la em conjunto com as diretrizes atuais do ATLS.
As Fórmulas: Clássica vs. Atual
- Fórmula de Parkland Clássica:
Volume Total (mL) = 4 mL x Peso (kg) x %SCQ
- Fórmula de Brooke Modificada (Recomendada pelo ATLS):
Volume Total (mL) = 2 mL x Peso (kg) x %SCQ
A mudança para a fórmula de 2 mL visa reduzir os riscos de hiper-hidratação e suas complicações, como a síndrome compartimental abdominal e o edema pulmonar. A fórmula clássica de 4 mL ainda é considerada para casos específicos, como queimaduras elétricas de alta voltagem. A %SCQ refere-se à porcentagem da área corporal acometida por queimaduras de segundo e terceiro graus, estimada pela "Regra dos Nove".
O Ritmo da Infusão: A Regra das 8h/16h
Calcular o volume é apenas metade do trabalho. A velocidade de infusão é crucial e segue um ritmo específico:
- Primeiras 8 horas: Metade (50%) do volume total calculado deve ser infundida.
- Próximas 16 horas: A outra metade (50%) do volume é administrada.
Ponto de Atenção Crítico: O relógio para as "primeiras 8 horas" começa a contar a partir do momento em que a queimadura ocorreu, e não da chegada do paciente ao hospital.
Exemplo Prático (usando a fórmula ATLS)
Vamos aplicar a um paciente de 70 kg com 30% de SCQ, que chegou ao hospital 2 horas após o acidente:
-
Cálculo do Volume Total (24h):
Volume = 2 mL x 70 kg x 30% = 4200 mL
-
Plano de Infusão:
- Primeiro Período:
4200 mL / 2 = 2100 mL
- Segundo Período:
2100 mL
restantes
- Primeiro Período:
-
Cálculo da Taxa de Infusão Ajustada:
- O tempo restante para o primeiro período é
8h - 2h = 6h
. - Taxa para as primeiras 6h:
2100 mL / 6 h = 350 mL/h
- Taxa para as próximas 16h:
2100 mL / 16 h = 131,25 mL/h
- O tempo restante para o primeiro período é
A solução de escolha é o Ringer Lactato aquecido.
Monitoramento Contínuo: A Chave para o Sucesso
A reposição volêmica não é um evento único, mas um processo dinâmico. O verdadeiro sucesso terapêutico reside na monitorização contínua e no ajuste fino da infusão, garantindo a perfusão tecidual sem incorrer nos riscos da sobrecarga hídrica.
Os Pilares da Monitorização: O Que Avaliar?
Uma vez iniciada a infusão, a equipe deve focar em parâmetros objetivos para guiar a terapia.
-
Débito Urinário: O Padrão-Ouro Este é o parâmetro mais preciso e confiável para avaliar a eficácia da reposição. Ele reflete diretamente o volume circulante efetivo e a função renal. A monitorização requer a inserção de um cateter vesical de demora. As metas são:
- Adultos: 0,5 mL/kg/hora.
- Crianças (> 30 kg): 1 mL/kg/hora.
-
Sinais Vitais e Estado de Perfusão Embora o débito urinário seja o padrão-ouro, outros sinais são fundamentais:
- Pressão Arterial e Frequência Cardíaca: A normalização da pressão e a redução da taquicardia são sinais positivos, mas a taquicardia pode ser um indicador pouco confiável em queimados devido à dor e à resposta inflamatória.
- Nível de Consciência: A melhora do estado neurológico (escala de coma de Glasgow) indica uma melhor perfusão cerebral.
- Tempo de Enchimento Capilar: A normalização (< 2 segundos) aponta para a restauração da perfusão periférica.
O manejo é um ciclo contínuo de "repor, reavaliar e ajustar". Se os parâmetros, especialmente o débito urinário, não atingem a meta, a taxa de infusão deve ser aumentada. Se excedem a meta ou surgem sinais de sobrecarga, a infusão deve ser reduzida.
Além dos Cristaloides: Ressuscitação Balanceada no Trauma
Em cenários de trauma grave com choque hemorrágico e necessidade de transfusão maciça, a simples infusão de cristaloides é insuficiente e pode ser deletéria, levando à coagulopatia dilucional. Para combater isso, surge a Ressuscitação Volêmica Balanceada (ou hemostática).
Esta abordagem moderna preconiza a administração de hemoderivados em uma proporção que mimetiza o sangue total. O protocolo mais difundido é a proporção 1:1:1:
- 1 unidade de concentrado de hemácias
- 1 unidade de plasma fresco congelado
- 1 unidade de plaquetas
Estudos demonstram que essa estratégia está associada a uma redução significativa da mortalidade em pacientes politraumatizados, pois atua diretamente na prevenção da "tríade letal" do trauma (acidose, hipotermia e coagulopatia). A recomendação atual do ATLS é iniciar com um bolus restrito de cristaloide aquecido (1 litro em adultos) e, se a instabilidade persistir, transicionar rapidamente para a transfusão de hemoderivados.
Manejo em Situações Especiais: Pediatria, Queimaduras Elétricas e Comorbidades
A verdadeira expertise no manejo de fluidos reside na capacidade de adaptar a estratégia a populações e condições específicas.
Atenção Redobrada na Pediatria
Crianças não são "adultos em miniatura". Sua fisiologia única exige precisão. Embora a fórmula clássica de Parkland (4 mL) seja uma referência histórica, as diretrizes atuais do ATLS para queimaduras térmicas são mais específicas:
- Crianças > 30 kg:
2 mL x Peso (kg) x %SCQ
(usando Ringer Lactato). - Crianças < 30 kg:
3 mL x Peso (kg) x %SCQ
. - No choque hemorrágico, a reanimação começa com um bolus de 20 ml/kg de cristaloide aquecido, com transição rápida para hemoderivados (10-20 ml/kg) se não houver resposta.
O Desafio das Queimaduras Elétricas
A lesão visível na pele frequentemente subestima a real extensão do dano tecidual profundo.
- Necessidades Hídricas Aumentadas: A Fórmula de Parkland com 4 mL é o ponto de partida recomendado.
- Prevenção da Lesão Renal: A destruição muscular maciça libera mioglobina. O objetivo é manter um débito urinário mais elevado (1 a 1,5 mL/kg/h em adultos) para prevenir a insuficiência renal aguda. A fórmula é um guia, mas a diurese do paciente dita o ritmo real da infusão.
Reposição Cautelosa em Pacientes com Comorbidades
Em pacientes com certas condições preexistentes, o mantra muda de "agressiva" para "criteriosa".
- Contusão Pulmonar e TCE: A administração excessiva de cristaloides pode agravar o edema pulmonar e cerebral. A ressuscitação deve ser suficiente apenas para manter a perfusão, evitando a sobrecarga.
- Cirrose Avançada: Em hemorragia digestiva, uma ressuscitação agressiva pode elevar a pressão portal e aumentar o risco de ressangramento. O objetivo é manter uma "hipotensão permissiva" (PAS 90-100 mmHg).
- Insuficiência Renal: Com a excreção comprometida, a reposição deve ser individualizada, com monitoramento rigoroso de sinais de sobrecarga.
Dominar a reposição volêmica é entender que as fórmulas são o ponto de partida, não o destino final. A verdadeira maestria está na capacidade de integrar os princípios do ATLS, aplicar os cálculos corretamente e, acima de tudo, monitorar a resposta do paciente de forma contínua e dinâmica. É a adaptação da terapia à fisiologia individual que define um manejo de excelência, navegando com segurança entre a hipovolemia e a sobrecarga hídrica.
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