Prezado colega profissional de saúde, a correta hidratação de pacientes queimados não é apenas uma etapa do tratamento – é, frequentemente, a diferença entre a vida e a morte, especialmente nas horas críticas que se seguem à lesão. Este guia completo sobre fluidoterapia em queimaduras foi meticulosamente elaborado para ir além dos protocolos básicos, oferecendo um mergulho profundo na fisiopatologia, nas estratégias de avaliação e ressuscitação, no monitoramento preciso e nos desafios específicos que você encontrará. Nosso objetivo é claro: capacitá-lo com o conhecimento e a confiança necessários para otimizar cada decisão, desde o atendimento inicial até o manejo pós-ressuscitação, visando sempre os melhores desfechos para seus pacientes.
A Fisiopatologia da Queimadura: Entendendo a Perda Volêmica Crítica
Uma lesão térmica desencadeia uma cascata de eventos fisiopatológicos complexos e interligados, com consequências imediatas e potencialmente fatais. Compreender esses mecanismos é fundamental para instituir uma terapia de reposição volêmica rápida e eficaz, crucial para a sobrevivência do paciente queimado. O protagonista deste drama inicial é a perda volêmica crítica, que pode evoluir rapidamente para o choque hipovolêmico.
O Epicentro da Crise: Aumento da Permeabilidade Capilar
Logo após a agressão térmica, o corpo reage com uma intensa resposta inflamatória. Uma miríade de mediadores inflamatórios, como histamina, cininas, prostaglandinas, leucotrienos e citocinas, é liberada em grande quantidade, tanto na área queimada quanto sistemicamente. O impacto mais devastador desses mediadores, especialmente nas primeiras 24 a 48 horas pós-queimadura, é um aumento significativo e global da permeabilidade capilar. Isso significa que as paredes dos menores vasos sanguíneos, os capilares, tornam-se "porosas", perdendo sua integridade e capacidade de reter fluidos e, crucialmente, proteínas dentro do espaço intravascular.
- Este aumento da permeabilidade não se restringe apenas aos tecidos diretamente afetados pela queimadura. Em pacientes com queimaduras extensas (geralmente consideradas aquelas que acometem mais de 20% da Superfície Corporal Queimada - SCQ), o fenômeno se generaliza, afetando capilares em todo o organismo, inclusive em áreas não queimadas.
A Grande Migração: Translocação de Líquidos e Proteínas e a Sequestração de Plasma
Com os capilares mais permeáveis, inicia-se um processo crítico conhecido como translocação de líquidos e proteínas. Grandes volumes de plasma, rico em água, eletrólitos e proteínas (especialmente albumina, que é fundamental para manter a pressão oncótica intravascular), extravasam do compartimento intravascular para o espaço intersticial – o espaço entre as células. Este movimento tem duas consequências principais e interligadas:
- Edema: O acúmulo de fluido e proteínas no interstício leva à formação de edema, que pode ser massivo e generalizado, contribuindo para a disfunção de órgãos e tecidos.
- Sequestração de Plasma: A perda de fluido plasmático do sistema circulatório para os tecidos é denominada sequestração de plasma. Este é, sem dúvida, o principal fenômeno responsável pela alta mortalidade em grandes queimados nas primeiras 48 horas pós-lesão. O volume sanguíneo circulante efetivo diminui drasticamente, levando à hipovolemia. Como os glóbulos vermelhos e outros elementos figurados do sangue permanecem inicialmente no espaço intravascular enquanto o plasma é perdido, ocorre uma hemoconcentração, frequentemente evidenciada pelo aumento do hematócrito.
O Desfecho Iminente: Choque Hipovolêmico por Queimadura
A hipovolemia progressiva, resultante da massiva sequestração de plasma, culmina no temido choque por queimadura, uma forma distributiva e hipovolêmica de choque. A redução do retorno venoso ao coração diminui o débito cardíaco, e a consequente perfusão tecidual inadequada compromete a oferta de oxigênio e nutrientes aos órgãos vitais. Se não revertido prontamente com reposição volêmica agressiva, o choque por queimadura pode levar à disfunção e falência múltipla de órgãos.
A Resposta Metabólica e o Desequilíbrio Hidroeletrolítico: Agravantes do Quadro
Paralelamente à crise volêmica, a queimadura desencadeia uma resposta metabólica profunda e sistêmica. Embora o estado de hipermetabolismo – caracterizado por taquicardia persistente, aumento significativo do consumo calórico, intensa proteólise (degradação de proteínas musculares) e lipólise (degradação de gorduras) – se manifeste mais classicamente e atinja seu pico entre 3 a 5 dias após a lesão, as alterações metabólicas iniciam-se precocemente. Há um intenso catabolismo e alterações no metabolismo da glicose desde as fases iniciais, preparando o cenário para esta resposta prolongada e desgastante.
Além disso, a perda de fluidos, a destruição celular direta pela queimadura e as alterações na função renal contribuem para um complexo desequilíbrio hidroeletrolítico. Alterações como a hiperpotassemia (aumento do potássio sérico, devido à liberação de potássio das células lesadas) e a hiponatremia (diminuição do sódio sérico) são comuns em grandes queimados. É crucial entender, no entanto, que embora esses desequilíbrios agravem o quadro clínico e necessitem de monitoramento e correção cuidadosos, eles não são a causa primária do choque por queimadura nas fases iniciais, que é fundamentalmente decorrente da perda de volume intravascular.
A compreensão dessa intrincada fisiopatologia – desde o aumento da permeabilidade capilar até o desenvolvimento do choque hipovolêmico, passando pela sequestração de plasma e pelas respostas metabólicas e eletrolíticas – sublinha a necessidade urgente e imperativa da fluidoterapia agressiva e criteriosa. A reposição volêmica adequada, guiada por parâmetros clínicos e laboratoriais, é a pedra angular no tratamento inicial do grande queimado, visando restaurar o volume intravascular, garantir a perfusão tecidual e, em última instância, aumentar as chances de sobrevida e minimizar complicações.
Avaliação e Prioridades no Atendimento Inicial ao Queimado: Quando e Como Iniciar a Fluidoterapia?
O atendimento inicial ao paciente queimado é uma corrida contra o tempo, onde cada decisão impacta diretamente o prognóstico. A abordagem deve ser sistemática, seguindo as prioridades do ATLS (Advanced Trauma Life Support), resumidas no mnemônico ABCDE. Entender quando e como iniciar a fluidoterapia é crucial, mas essa ação se encaixa em uma sequência lógica de cuidados emergenciais.
A Prioridade Incontestável: Vias Aéreas (A - Airway)
Antes de qualquer outra medida, incluindo a hidratação, a garantia de uma via aérea pérvia é a prioridade máxima. Queimaduras faciais, fuligem nas narinas ou boca, rouquidão, estridor ou história de confinamento em ambiente incendiado são sinais de alerta para lesão inalatória. O edema progressivo pode obstruir completamente as vias aéreas, levando à parada cardiorrespiratória por hipoxemia. Nesses casos, a intubação orotraqueal precoce é mandatória, antes mesmo que o edema se instale por completo.
Garantindo a Ventilação (B - Breathing)
Após assegurar a via aérea, a próxima etapa é garantir uma ventilação e oxigenação adequadas. Pacientes queimados podem apresentar dificuldade respiratória por lesão pulmonar direta, intoxicação por monóxido de carbono ou cianeto, ou restrição da expansibilidade torácica devido a queimaduras circunferenciais no tórax. A oferta de oxigênio suplementar em alto fluxo é uma medida inicial importante.
Circulação e o Início da Fluidoterapia (C - Circulation)
Com as vias aéreas e a ventilação estabilizadas, o foco se volta para a circulação e a ressuscitação volêmica. A primeira etapa é a estimativa da Superfície Corporal Queimada (SCQ), utilizando métodos como a "Regra dos Nove" em adultos ou a tabela de Lund-Browder, mais precisa em crianças. Esta estimativa é fundamental para determinar a necessidade de hidratação endovenosa.
Quando Iniciar a Fluidoterapia Endovenosa?
A hidratação endovenosa agressiva com cristaloides (como Ringer Lactato) é indicada nas seguintes situações:
- Adultos: SCQ > 15-20%.
- Crianças: SCQ > 10-15% (algumas referências indicam >10%, especialmente em menores de um ano).
- Presença de queimaduras de vias aéreas ou suspeita de lesão inalatória.
- Trauma significativo associado à queimadura.
- Sinais de choque hipovolêmico, como letargia, má perfusão periférica, taquicardia e hipotensão.
- Queimaduras elétricas de alta voltagem, que frequentemente causam lesões musculares profundas (rabdomiólise) e necessitam de hidratação mais vigorosa para proteger a função renal.
- Pacientes com condições clínicas prévias que dificultem a hidratação oral ou aumentem o risco de descompensação (ex: idosos, portadores de insuficiência cardíaca ou renal, embora nestes a reposição exija cautela e monitoramento rigoroso).
Acesso Venoso: Precoce e Calibroso
A obtenção de um acesso venoso periférico calibroso é uma prioridade. Idealmente, devem ser estabelecidos dois acessos venosos periféricos com cateteres de grosso calibre (mínimo 18G). É preferível puncionar áreas de pele não queimada, mas se necessário, a punção em pele queimada é considerada segura e aceitável. O acesso venoso central é reservado para situações onde o acesso periférico não é factível.
Exposição e Controle Ambiental (E - Exposure/Environment)
Durante a avaliação, é crucial:
- Remover todas as roupas e adornos: Roupas ainda quentes ou em combustão continuam a lesar a pele. Anéis, pulseiras e cintos podem reter calor e causar constrição à medida que o edema se desenvolve.
- Resfriamento adequado da queimadura:
- Indicado para queimaduras menores (até 5% da SCQ).
- Realizar com água corrente em temperatura ambiente ou fria (acima de 8°C), por 20 a 30 minutos, idealmente logo após o evento. Isso ajuda a aliviar a dor e pode limitar a profundidade da lesão.
- Evitar o resfriamento excessivo em grandes queimados (>10-15% SCQ) ou o uso de gelo direto, pois há um risco significativo de hipotermia, uma complicação grave que piora o prognóstico. Compressas úmidas em grandes áreas são contraindicadas pelo mesmo motivo.
- Jamais aplique substâncias caseiras como manteiga, pasta de dente ou borra de café.
Avaliação Neurológica (D - Disability)
Uma breve avaliação do nível de consciência (Escala de Coma de Glasgow) e resposta pupilar faz parte do D. Alterações podem indicar hipóxia, choque ou trauma craniano associado.
Transferência para Centros Especializados
Nem todos os hospitais possuem recursos para tratar queimaduras complexas. A transferência para um Centro de Tratamento de Queimados (CTQ) é indicada em casos de:
- Queimaduras de 2º e 3º grau em adultos com SCQ > 10-20% (varia conforme a referência).
- Queimaduras de 2º e 3º grau em crianças com SCQ > 10%.
- Queimaduras de 3º grau com SCQ > 5%.
- Lesão inalatória confirmada ou suspeita.
- Queimaduras elétricas (incluindo lesão por raio) e químicas significativas.
- Queimaduras em áreas críticas: face, mãos, pés, genitália, períneo e grandes articulações.
- Queimaduras circunferenciais de membros ou tórax.
- Queimaduras em pacientes com comorbidades preexistentes significativas.
- Trauma associado.
O atendimento inicial bem conduzido, com ênfase na estabilização das funções vitais e na indicação precisa da fluidoterapia, é o alicerce para um melhor desfecho no tratamento do paciente queimado. Lembre-se que os curativos, embora importantes, são realizados após a estabilização primária.
Protocolos de Ressuscitação Volêmica: Escolha de Fluidos, Fórmulas de Cálculo e Administração
A ressuscitação volêmica vigorosa e precisa é um dos pilares fundamentais no tratamento do paciente grande queimado, especialmente nas primeiras horas após a lesão. O objetivo principal é restaurar e manter a perfusão tecidual adequada, prevenindo a progressão do choque hipovolêmico, uma consequência direta da perda massiva de fluidos e do aumento da permeabilidade capilar induzidos pela queimadura.
Escolha dos Fluidos: Priorizando os Cristaloides Isotônicos
Na fase aguda da ressuscitação hídrica em queimados, os cristaloides isotônicos são os fluidos de primeira escolha. Entre eles, o Ringer Lactato (RL) é frequentemente preferido. Sua composição eletrolítica é mais próxima à do plasma sanguíneo, e o lactato presente na solução é metabolizado no fígado a bicarbonato, ajudando a tamponar a acidose metabólica que pode ocorrer. Embora o soro fisiológico 0,9% (SF 0,9%) também seja uma opção isotônica, seu uso em grandes volumes pode estar associado ao risco de acidose metabólica hiperclorêmica.
Nas primeiras 24 a 48 horas, a terapia com cristaloides é a regra. O uso de coloides, como a albumina, geralmente é reservado para fases posteriores (após as primeiras 24-48 horas) ou em situações específicas, como resposta inadequada à reposição com cristaloides ou hipoalbuminemia severa, devido ao aumento da permeabilidade capilar inicial que permitiria o extravasamento dessas macromoléculas para o interstício.
Fórmulas de Cálculo de Volume: A Referência de Parkland/Baxter
Diversas fórmulas foram desenvolvidas para estimar o volume de fluido necessário nas primeiras 24 horas. A mais conhecida e amplamente utilizada é a Fórmula de Parkland (ou Baxter):
- Volume Total (mL) nas primeiras 24 horas = 2 a 4 mL x Peso do Paciente (kg) x Percentual da Superfície Corporal Queimada (%SCQ)
A faixa de 2 a 4 mL/kg/%SCQ permite uma adaptação individualizada. Frequentemente, inicia-se com 2 mL/kg/%SCQ para adultos, ajustando-se conforme a resposta clínica e os parâmetros de monitoramento. Para crianças, a extremidade superior da faixa (3-4 mL/kg/%SCQ) pode ser mais apropriada, além da necessidade de fluidos de manutenção. É crucial lembrar que estas fórmulas são guias iniciais, e a terapia deve ser continuamente ajustada com base na resposta do paciente.
Administração dos Fluidos: Ritmo, Ajustes e Cuidados Essenciais
O ritmo de infusão é tão crítico quanto o volume total. Segundo a fórmula de Parkland:
- Primeira Metade (50%) do Volume Total: Deve ser administrada nas primeiras 8 horas contadas a partir do momento da queimadura, e não da chegada ao hospital.
- Segunda Metade (50%) do Volume Total: Deve ser administrada nas 16 horas subsequentes.
É vital o ajuste do tempo de infusão considerando o tempo decorrido após a queimadura. Por exemplo, se um paciente chega ao serviço de emergência 2 horas após o evento térmico, a primeira metade do volume calculado deverá ser infundida nas 6 horas restantes daquele período inicial de 8 horas.
Outros aspectos importantes na administração incluem:
- Aquecimento dos Fluidos: A infusão de grandes volumes de fluidos em temperatura ambiente pode induzir ou agravar a hipotermia, uma complicação deletéria que piora a coagulopatia e o prognóstico. Recomenda-se o aquecimento dos fluidos intravenosos para próximo da temperatura corporal (idealmente 37-39°C) antes da administração.
- Fases da Reposição: A fase inicial, conhecida como fase de expansão ou ressuscitação, visa restaurar o volume intravascular e garantir a perfusão orgânica.
- Monitoramento: A diurese é um parâmetro chave para guiar a fluidoterapia, com um alvo de 0,5 mL/kg/hora em adultos e 1 mL/kg/hora em crianças (com menos de 30 kg). Valores abaixo disso geralmente indicam reposição inadequada. Outros parâmetros incluem frequência cardíaca (alvo < 110-120 bpm em adultos), pressão arterial média e nível de consciência.
- Considerações Especiais: Pacientes com comorbidades significativas (insuficiência cardíaca, renal, idade avançada) requerem cautela e monitoramento intensivo para evitar sobrecarga volêmica. Queimaduras elétricas, devido ao risco de rabdomiólise e lesão renal aguda, podem necessitar de volumes de infusão ainda maiores para manter uma diurese mais elevada (ex: 1-1,5 mL/kg/h).
A hidratação venosa é a via preferencial, e o uso de bombas de infusão é recomendado para garantir a precisão do volume e do ritmo administrados, especialmente nas fases críticas. Uma ressuscitação volêmica bem conduzida é essencial para minimizar as complicações e melhorar os desfechos em pacientes queimados.
Monitoramento da Hidratação em Queimados: Parâmetros Essenciais e Metas Terapêuticas
A eficácia da fluidoterapia em pacientes queimados depende intrinsecamente de um monitoramento contínuo e rigoroso. Esta vigilância constante não apenas guia os ajustes na reposição volêmica, mas também é crucial para prevenir complicações como a hipoperfusão tecidual ou a sobrecarga hídrica. A resposta individual à terapia volêmica varia, tornando a reavaliação sistemática um pilar do tratamento.
Parâmetros Essenciais para o Monitoramento
Diversos parâmetros são utilizados para aferir a adequação da hidratação, sendo alguns mais fidedignos que outros no contexto específico das queimaduras.
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Débito Urinário: O Principal Indicador de Perfusão Tecidual O débito urinário (DU) é universalmente reconhecido como o parâmetro mais fidedigno e sensível para avaliar a perfusão tecidual e a resposta à ressuscitação volêmica em pacientes queimados. Ele reflete diretamente a adequação do fluxo sanguíneo renal, que por sua vez é um excelente indicador da perfusão sistêmica.
- Monitoramento: Idealmente, o DU deve ser monitorado continuamente através de um cateter vesical de demora, com medições horárias.
- Metas Terapêuticas: O ajuste da infusão de volume deve ser rigorosamente controlado com base no débito urinário, visando:
- Adultos: 0,5 mL/kg/hora.
- Crianças (com mais de 30 kg): 0,5 a 1 mL/kg/hora.
- Crianças (com menos de 30 kg): 1 a 2 mL/kg/hora.
- Queimaduras Elétricas: Devido ao risco de rabdomiólise e mioglobinúria, as metas são mais elevadas para garantir um fluxo urinário adequado e proteger os rins:
- Adultos: 100 mL/hora.
- Crianças (com menos de 30 kg): 1,5 a 2 mL/kg/hora. Um débito urinário inferior a estas metas, especialmente nas primeiras 48 horas, quase sempre indica uma reposição volêmica inadequada e necessita de pronta correção na taxa de infusão.
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Frequência Cardíaca (FC) A FC pode oferecer informações sobre o estado volêmico, embora seja menos precisa que o débito urinário, pois pode ser influenciada por dor, ansiedade e mediadores inflamatórios.
- Adultos: FCs de até 110 bpm geralmente sugerem volume intravascular adequado. Valores consistentemente acima de 120 bpm podem indicar hipovolemia.
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Pressão Arterial Média (PAM) A PAM é um indicador da pressão de perfusão dos órgãos. Embora a hipotensão seja um sinal tardio de choque no paciente queimado, a manutenção de uma PAM adequada (geralmente > 65 mmHg em adultos) é um objetivo importante.
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Nível de Consciência Alterações no nível de consciência, como agitação, confusão ou letargia, podem indicar hipoperfusão cerebral. Um paciente alerta e orientado geralmente sugere perfusão cerebral adequada.
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Sinais de Perfusão Periférica A avaliação da perfusão periférica inclui:
- Tempo de enchimento capilar: Normal geralmente inferior a 2-3 segundos.
- Temperatura e coloração da pele: Pele fria, pálida ou cianótica pode indicar má perfusão.
- Qualidade dos pulsos periféricos: Pulsos filiformes ou ausentes são sinais de alerta.
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Outros Parâmetros Laboratoriais e Hemodinâmicos
- Lactato sérico: Níveis elevados de lactato podem indicar hipoperfusão tecidual e metabolismo anaeróbico. A normalização do lactato é um dos objetivos da ressuscitação.
- Déficit de base: Pode auxiliar na avaliação da acidose metabólica associada ao choque.
- Em casos selecionados ou em pacientes com comorbidades significativas (insuficiência cardíaca, renal), pode-se recorrer a monitoramento hemodinâmico mais invasivo, como a Pressão Venosa Central (PVC), embora seu uso rotineiro em queimados seja debatido.
A Necessidade de Reavaliação Constante
A infusão de fluidos não é um processo estático. A resposta do paciente queimado à terapia volêmica é dinâmica, influenciada pela contínua perda de fluidos para o terceiro espaço, variações na resposta inflamatória e outros fatores. Por isso, a reavaliação constante dos parâmetros de perfusão é fundamental. A velocidade de infusão de cristaloides, como o Ringer Lactato (preferencial nas primeiras 48 horas), deve ser ajustada frequentemente – muitas vezes a cada hora nas fases iniciais – com base na resposta clínica, principalmente no débito urinário. Se o débito urinário estiver abaixo da meta, a taxa de infusão deve ser aumentada. Se estiver excessivo, pode ser necessário reduzi-la cautelosamente para evitar sobrecarga hídrica, especialmente em pacientes com reserva cardiopulmonar limitada.
A avaliação da perda hídrica continua sendo um desafio, mas o monitoramento rigoroso e a adaptação da terapia volêmica são as chaves para otimizar os desfechos, minimizando a disfunção orgânica e melhorando a sobrevida do paciente queimado. É importante lembrar que condições clínicas prévias, como idade avançada ou insuficiência cardíaca e/ou renal, exigem cautela adicional e monitoramento ainda mais estrito, incluindo ausculta pulmonar frequente para detectar sinais precoces de congestão.
Desafios e Considerações Especiais na Fluidoterapia do Paciente Queimado
A reposição volêmica no paciente queimado, embora vital, exige atenção a particularidades que podem impactar significativamente o prognóstico. Ignorar essas nuances pode levar a complicações graves. Vamos detalhar os cenários que demandam ajustes precisos e um olhar diferenciado na fluidoterapia.
Queimaduras Elétricas: Riscos Ocultos e Metas Específicas
As queimaduras elétricas são distintas devido ao potencial de lesão muscular profunda (rabdomiólise), muitas vezes desproporcional à lesão cutânea visível. Essa destruição muscular libera grandes quantidades de mioglobina, que pode obstruir os túbulos renais e levar à insuficiência renal aguda.
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Manejo da Diurese: Para proteger os rins e facilitar a eliminação de mioglobina, a meta de diurese em pacientes com queimaduras elétricas é significativamente mais elevada:
- Adultos: Almeja-se um débito urinário de aproximadamente 100 ml/hora (o que equivale a cerca de 1,5 ml/kg/h para um adulto de 70kg).
- Crianças (<30 kg): A meta é de 1,5 a 2 ml/kg/hora. A monitorização rigorosa do débito urinário é, portanto, fundamental para guiar a intensidade da reposição volêmica.
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Considerações sobre Diuréticos e Potássio:
- Diuréticos: Nos primeiros dias após uma queimadura elétrica (e em queimaduras térmicas extensas em geral), uma diurese baixa (inferior a 0,5 ml/kg/h em adultos) geralmente sinaliza uma reposição volêmica inadequada. Portanto, o uso de diuréticos, como a espironolactona, é geralmente contraindicado neste período inicial. A conduta correta é aumentar a taxa de infusão de fluidos cristaloides.
- Potássio: A lesão muscular extensa libera grandes quantidades de potássio intracelular, elevando o risco de hipercalemia, uma arritmia cardíaca potencialmente fatal. Por essa razão, não há indicação de reposição de potássio no manejo inicial de vítimas de trauma elétrico.
Hidratação em Crianças: Precisão e Vigilância Constante
As crianças não são "adultos pequenos" quando se trata de fluidoterapia. Sua fisiologia particular exige cálculos específicos e uma vigilância constante devido à sua maior sensibilidade a variações de volume.
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Avaliação Clínica Detalhada: O primeiro passo é sempre classificar o estado de hidratação da criança (hidratada, com algum grau de desidratação, ou desidratada grave). Essa avaliação baseia-se em sinais clínicos como:
- Estado geral e nível de consciência: Alerta, irritada, ou letárgica/hipoativa (sinal de gravidade).
- Hidratação das mucosas: Secas ou úmidas.
- Presença de lágrimas: Ausentes em desidratação significativa.
- Turgor da pele: Retorno lento da prega cutânea.
- Qualidade do pulso: Cheio ou fraco/fino.
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Cálculos de Fluidos e Sensibilidade:
- A hidratação de manutenção em crianças é frequentemente calculada pela regra de Holliday-Segar.
- Em situações de desidratação grave em crianças menores de 1 ano (Plano C do Ministério da Saúde), o protocolo de reidratação rápida venosa pode envolver a administração de 30 ml/kg na primeira hora, seguidos de 70 ml/kg nas próximas 5 horas, utilizando soluções como Ringer Lactato ou soro fisiológico 0,9%.
- É crucial lembrar que crianças possuem uma menor reserva fisiológica e são mais suscetíveis tanto à hipovolemia quanto à hipervolemia.
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Escolha de Líquidos para Hidratação Oral: Para a manutenção da hidratação e em casos de desidratação leve, a água é a bebida de escolha. Sucos, refrigerantes e outras bebidas açucaradas devem ser evitados na rotina alimentar infantil.
Complicações da Fluidoterapia: O Desafio de Manter a Euvolemia
A meta da fluidoterapia é restaurar e manter a euvolemia (volume hídrico normal). Desvios para mais ou para menos podem ser deletérios.
- Hipovolemia Persistente: Se, apesar da aplicação de fórmulas de cálculo, a diurese permanecer baixa (<0,5 ml/kg/h nas primeiras 24 horas), a causa mais provável é uma reposição volêmica insuficiente. A resposta não é administrar diuréticos, mas sim aumentar a taxa de infusão de cristaloides. Volumes de hidratação fixos como 30ml/kg ou 40ml/kg não são universalmente adequados e podem ser insuficientes em grandes queimados.
- Hipervolemia e "Fluid Creep": A administração excessiva de fluidos, conhecida como "fluid creep", é uma preocupação crescente. A hiper-hidratação pode levar a:
- Edema Pulmonar: Dificultando as trocas gasosas.
- Síndrome Compartimental Abdominal: O aumento da pressão intra-abdominal pode comprometer a perfusão de órgãos vitais.
- Agravamento de Edema de Extremidades: Aumentando o risco de síndromes compartimentais periféricas.
- Piora da Cicatrização: O edema excessivo pode prejudicar a perfusão tecidual local. A monitorização cuidadosa visa ajustar a infusão para manter a perfusão tecidual adequada, refletida por uma diurese satisfatória e outros parâmetros hemodinâmicos, evitando o excesso.
Prevenção da Hipotermia: Um Inimigo Frequente do Paciente Queimado
Pacientes queimados perdem a barreira protetora da pele e, com ela, a capacidade de regular a temperatura corporal, tornando-os extremamente vulneráveis à hipotermia.
- Medidas Preventivas Essenciais:
- Manter o ambiente aquecido.
- Cobrir o paciente com lençóis limpos e secos e cobertores térmicos.
- Utilizar curativos secos nas áreas queimadas, especialmente no atendimento pré-hospitalar. Curativos úmidos em grandes superfícies são contraindicados, pois aumentam significativamente a perda de calor.
- Se for necessário resfriar a queimadura para aliviar a dor e diminuir a progressão da lesão (geralmente em queimaduras menores, <10% da Superfície Corporal Queimada (SCQ), e por tempo limitado, 10-20 minutos), utilizar água em temperatura ambiente ou ligeiramente fria (acima de 8°C), nunca gelada. É crucial monitorar continuamente a temperatura corporal do paciente durante este processo.
Impacto no Manejo Respiratório e Lesões Associadas
A fluidoterapia tem implicações diretas no sistema respiratório, especialmente em pacientes com lesões inalatórias ou traumas torácicos associados.
- Lesão Inalatória: Pacientes com queimaduras faciais, vibrissas nasais queimadas, escarro carbonáceo, rouquidão, estridor ou história de queimadura em ambiente fechado têm alto risco de lesão inalatória. O edema de vias aéreas pode progredir rapidamente, exigindo intubação orotraqueal precoce para garantir uma via aérea pérvia. A oferta de oxigênio deve ser com Fração Inspirada de Oxigênio (FiO₂) próxima a 100% inicialmente. A broncoscopia pode ser necessária para diagnóstico e remoção de debris.
- Queimaduras Circunferenciais de Tórax: Queimaduras profundas e circunferenciais no tórax podem formar uma couraça inelástica, restringindo a expansão torácica e comprometendo a ventilação. Nesses casos, a escarotomia torácica pode ser uma medida salvadora.
- Contusão Pulmonar: Em traumas associados, como quedas ou explosões, pode haver contusão pulmonar. Nesses casos, a fluidoterapia deve ser particularmente criteriosa e restritiva. A hiperidratação pode agravar o edema pulmonar preexistente na área contundida, piorando a hipoxemia e as trocas gasosas. O objetivo é manter a perfusão com o mínimo de volume necessário.
Dominar esses desafios e considerações especiais é essencial para otimizar a fluidoterapia no paciente queimado, minimizando complicações e melhorando os desfechos. A vigilância contínua e a individualização do tratamento, baseadas na resposta clínica do paciente, são as chaves para o sucesso.
Manejo Integrado e Pós-Ressuscitação: O Papel Contínuo da Hidratação e Cuidados Adicionais
A fluidoterapia intensiva nas primeiras 24-48 horas é apenas o começo da jornada no Manejo Hospitalar de Queimaduras. Superada a fase crítica de ressuscitação volêmica, entramos em uma etapa prolongada que exige uma abordagem multidisciplinar e integrada, onde a hidratação clínica continua a ser vital, mas agora com novos objetivos e em conjunto com uma miríade de outros cuidados essenciais. O manejo inicial, seguindo princípios semelhantes ao ATLS (ABCDE), estabelece as bases para esta fase.
Transição da Ressuscitação para a Manutenção Hídrica
Após a estabilização hemodinâmica inicial, o foco do Manejo de Fluidos transita da reposição agressiva para a manutenção hídrica. O objetivo é suprir as necessidades basais do organismo, compensar as perdas contínuas (evaporativas pela superfície queimada, gastrointestinais) e evitar tanto a desidratação quanto a sobrecarga volêmica – uma complicação do Manejo Hídrico Pós-Operatório que pode levar a edema pulmonar ou de alças intestinais. A monitorização clínica (débito urinário, estado mental, sinais vitais) e laboratorial (eletrólitos, função renal) permanece crucial para guiar os ajustes na fluidoterapia.
Pilares do Cuidado Contínuo no Paciente Queimado
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Suporte Nutricional Precoce: A queimadura desencadeia um estado hipermetabólico intenso. A Nutrição em Pacientes Queimados é, portanto, um pilar terapêutico. Recomenda-se o início precoce (idealmente nas primeiras 12-24 horas) da nutrição enteral, muitas vezes por sonda (abordando o Manejo Gástrico em Pacientes Queimados), para modular a resposta inflamatória, preservar massa magra e otimizar a cicatrização. A nutrição parenteral é uma via de exceção. A descompressão gástrica pode ser necessária em queimaduras extensas (>20% SCQ) ou com íleo paralítico.
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Prevenção e Manejo de Infecções: A perda da barreira cutânea eleva drasticamente o risco de Infecção e Inflamação em Pacientes Queimados. A prevenção envolve:
- Uso de Antimicrobianos Tópicos em Queimaduras: Agentes como sulfadiazina de prata a 1% são aplicados para controlar a colonização bacteriana na ferida.
- Antibioticoterapia em Queimaduras: A antibioticoterapia sistêmica não é usada profilaticamente de rotina, sendo reservada para infecções documentadas, guiada por culturas.
- Vigilância para focos infecciosos comuns, como pneumonia associada à ventilação ou infecções de cateter.
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Cuidados com a Ferida Queimada:
- Curativos e Retalhos em Queimaduras: A maioria das queimaduras beneficia-se de curativos oclusivos que promovem um ambiente úmido para cicatrização e protegem contra contaminação.
- Bolhas em Queimaduras: Manejo Clínico: O manejo de flictenas é controverso. Bolhas pequenas e intactas podem ser mantidas, enquanto bolhas grandes, tensas ou que limitam o movimento podem ser aspiradas ou desbridadas.
- Cirurgia de Queimaduras: Desbridamento e Enxertia: Queimaduras de espessura parcial profunda e total frequentemente exigem desbridamento cirúrgico (escarectomia) para remover o tecido necrótico, seguido de enxertia de pele. Este procedimento, idealmente realizado precocemente (após estabilização hemodinâmica), reduz o risco infeccioso e melhora os resultados funcionais e estéticos. Em queimaduras circunferenciais com comprometimento vascular ou respiratório, a escarotomia é uma emergência.
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Manejo Hídrico no Perioperatório: Os múltiplos procedimentos cirúrgicos (desbridamentos, enxertias) que os pacientes queimados frequentemente enfrentam exigem um Manejo Volêmico Cirúrgico cuidadoso. É preciso balancear a reposição de perdas sanguíneas e insensíveis com o risco de hiper-hidratação, que pode agravar o edema tecidual e levar a complicações como íleo paralítico e deiscência de anastomoses. A necessidade hídrica pós-operatória basal é de aproximadamente 30-35 ml/kg/dia, ajustada individualmente.
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Manejo de Queimaduras Químicas: No Manejo Inicial do Paciente Queimado por agentes químicos, a irrigação imediata e abundante com água corrente (por 15-30 minutos ou mais, até pH neutro da pele) é a medida primordial para diluir e remover o agente. As vestes contaminadas devem ser removidas. Atenção a agentes específicos: queimaduras por fósforo requerem resfriamento com água, enquanto em queimaduras por sódio metálico, a água é contraindicada. Queimaduras por ácido fluorídrico podem causar hipocalcemia e hipomagnesemia sistêmicas. No Tratamento de Queimaduras Oculares por químicos, a irrigação ocular copiosa e imediata é igualmente crucial.
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Analgesia e Sedação Adequadas: A dor é um componente significativo no trauma térmico. Uma Analgesia eficaz, muitas vezes multimodal e com uso de opioides, é essencial para o conforto do paciente e para mitigar a resposta ao estresse. A sedação pode ser necessária para procedimentos ou para pacientes em ventilação mecânica. Lembre-se também da importância de cobrir o paciente para prevenir a hipotermia.
Em suma, o manejo do paciente queimado após a fase de ressuscitação é um processo dinâmico e complexo, onde a fluidoterapia se integra a uma gama de intervenções coordenadas. A vigilância contínua e a capacidade de ajustar o plano terapêutico às necessidades evolutivas do paciente são fundamentais para um desfecho favorável.
Dominar a fluidoterapia em pacientes queimados é uma arte e ciência que exige conhecimento profundo, vigilância constante e capacidade de adaptação. Desde a compreensão da cascata fisiopatológica que leva à perda volêmica crítica, passando pela aplicação criteriosa de protocolos de ressuscitação e monitoramento rigoroso, até o manejo dos desafios específicos e a transição para os cuidados pós-ressuscitação, cada etapa é crucial. Esperamos que este guia tenha solidificado sua compreensão e aprimorado suas habilidades para enfrentar essa complexa condição, sempre com o objetivo de otimizar a recuperação e a qualidade de vida dos pacientes.