Sepse: O Que É? Definição Atual (ILAS/Sepsis-3), Disfunção Orgânica e Critérios Diagnósticos
A sepse é uma das condições mais letais e incompreendidas da medicina moderna, frequentemente chamada de "assassina silenciosa" por sua capacidade de evoluir rapidamente a partir de infecções comuns. O problema é que a batalha contra a sepse começa com seu correto reconhecimento, e por décadas, a terminologia foi confusa e imprecisa. Este guia definitivo foi criado para cortar o ruído e ir direto ao ponto. Alinhado às diretrizes do Instituto Latino-Americano de Sepse (ILAS) e do consenso global Sepsis-3, nosso objetivo é desmistificar o conceito, mostrando por que o foco mudou da infecção para a resposta do corpo e como a identificação da disfunção orgânica é a chave que pode salvar vidas.
O Que é Sepse Hoje? A Definição Atualizada pelo Sepsis-3 e ILAS
Por muito tempo, o termo "sepse" foi confundido com expressões como "infecção generalizada" ou "septicemia". A medicina, no entanto, avançou para uma compreensão mais precisa, estabelecida pelo Terceiro Consenso Internacional para Definições de Sepse e Choque Séptico (Sepsis-3) e adotada globalmente.
De acordo com este consenso, a definição atual é:
Sepse é uma disfunção orgânica ameaçadora à vida, causada por uma resposta desregulada do hospedeiro a uma infecção.
Vamos analisar os pontos-chave desta definição:
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Resposta Desregulada do Hospedeiro: O problema central não é a infecção em si, mas a reação caótica do corpo a ela. Em vez de uma resposta imune controlada, o organismo desencadeia uma reação inflamatória sistêmica e desproporcional que, em vez de proteger, começa a agredir os próprios tecidos e órgãos.
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Disfunção Orgânica Ameaçadora à Vida: Esta é a consequência direta da resposta desregulada. A "guerra" interna danifica órgãos vitais que não estão necessariamente no local da infecção original. É a falha de órgãos como pulmões, rins, fígado ou cérebro que caracteriza a sepse e a torna uma emergência médica.
Essa nova definição foi fundamental para diferenciar a sepse de conceitos ultrapassados. Uma infecção pode estar localizada (pneumonia, infecção urinária), mas a sepse ocorre quando a resposta do corpo a essa infecção se torna sistêmica e prejudicial, causando disfunção em outros órgãos.
A Resposta Desregulada: Entendendo a Fisiopatologia da Sepse
Embora a infecção seja o gatilho, o verdadeiro protagonista na fisiopatologia da sepse é a resposta desregulada do próprio corpo. Imagine o sistema imunológico como bombeiros que, para apagar um fogo em uma casa, decidem inundar a cidade inteira, causando um dano muito maior.
Essa "inundação" é a resposta inflamatória sistêmica descontrolada:
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Ativação Imune e a "Tempestade de Citocinas": Células de defesa liberam mediadores químicos chamados citocinas para combater o patógeno. Na sepse, essa produção sai de controle, gerando uma "tempestade de citocinas" que espalha a inflamação por todo o organismo.
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Vasodilatação e Aumento da Permeabilidade Vascular: Essa cascata inflamatória faz com que os vasos sanguíneos se dilatem drasticamente, provocando uma queda abrupta da pressão arterial. As paredes dos vasos também se tornam "porosas", permitindo que o plasma extravase para os tecidos, reduzindo o volume de sangue circulante.
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Hipoperfusão e Hipóxia Tecidual: A combinação de queda da pressão e perda de volume impede que o sangue chegue de forma eficiente aos tecidos para entregar oxigênio. Esse desequilíbrio leva à hipóxia tecidual, ou seja, a "asfixia" das células.
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Disfunção Orgânica: Sem oxigênio, as células começam a morrer e os órgãos a falhar. É essa disfunção, causada pela resposta inflamatória do hospedeiro, que define a sepse e a torna uma condição com risco de vida.
Disfunção Orgânica: O Sinal de Alerta Decisivo
A definição moderna de sepse pode ser resumida em uma equação fundamental que todo profissional de saúde deve ter em mente:
Infecção (suspeita ou confirmada) + Disfunção Orgânica Aguda = Sepse
A expressão "sepse com disfunção orgânica" tornou-se redundante. Pela definição atual, não existe sepse sem disfunção orgânica. O reconhecimento dessa disfunção é a etapa crucial, e seus sinais podem ser identificados clinicamente. A suspeita deve aumentar na presença de:
- Disfunção Neurológica: Alteração súbita do nível de consciência, confusão mental ou agitação.
- Disfunção Respiratória: Dificuldade para respirar (taquipneia), baixa saturação de oxigênio (hipoxemia) ou necessidade de oxigênio suplementar.
- Disfunção Cardiovascular: Pressão arterial baixa (hipotensão), tempo de enchimento capilar lentificado (>2 segundos) ou aumento do lactato arterial.
- Disfunção Renal: Diminuição significativa da produção de urina (oligúria) ou elevação da creatinina.
- Disfunção Hepática: Aumento das bilirrubinas (causando icterícia).
- Disfunção Hematológica: Queda no número de plaquetas (plaquetopenia) ou alterações nos testes de coagulação.
A identificação de qualquer um desses sinais em um paciente com suspeita de infecção é um alerta máximo de que a condição se tornou uma emergência sistêmica.
Critérios Diagnósticos na Prática: Do qSOFA ao Escore SOFA
Para identificar e quantificar a disfunção orgânica à beira do leito, utilizamos ferramentas de triagem e escores clínicos padronizados.
O qSOFA: Uma Ferramenta de Triagem Rápida
Para pacientes fora da UTI, o qSOFA (quick Sequential Organ Failure Assessment) funciona como um alerta rápido. Ele não diagnostica a sepse, mas identifica pacientes com infecção e maior risco de desfechos desfavoráveis. O qSOFA é positivo se houver pelo menos dois dos seguintes critérios:
- Alteração do nível de consciência: Escala de Coma de Glasgow < 15.
- Frequência respiratória elevada: ≥ 22 incursões por minuto.
- Hipotensão: Pressão arterial sistólica ≤ 100 mmHg.
Um qSOFA positivo deve acionar uma investigação mais aprofundada com o escore SOFA.
O Escore SOFA: O Padrão-Ouro para Avaliar a Disfunção Orgânica
A confirmação da disfunção orgânica é feita pelo Escore SOFA (Sequential Organ Failure Assessment). A sepse é formalmente definida pela suspeita de infecção associada a um aumento agudo de 2 pontos ou mais no escore SOFA em relação ao estado basal do paciente.
O SOFA é uma avaliação completa que pontua a disfunção em seis sistemas:
- Respiratório (relação PaO₂/FiO₂)
- Neurológico (Escala de Coma de Glasgow)
- Cardiovascular (pressão arterial e necessidade de vasopressores)
- Hepático (níveis de bilirrubina)
- Coagulação (contagem de plaquetas)
- Renal (creatinina ou débito urinário)
O Papel Crucial do Lactato
Embora não faça parte do SOFA, o lactato sérico é um biomarcador fundamental. Níveis elevados são um sinal claro de hipoperfusão tecidual e estresse metabólico. O lactato não define sepse, mas é um poderoso indicador prognóstico, com níveis persistentemente elevados associados a maior mortalidade.
A Evolução da Terminologia: Adeus, 'Sepse Grave'
A precisão da linguagem é fundamental na medicina. Uma das mudanças mais significativas com o Sepsis-3 foi o abandono do termo "sepse grave".
Anteriormente, o diagnóstico se baseava nos critérios da Síndrome da Resposta Inflamatória Sistêmica (SIRS). Um paciente com infecção e SIRS tinha "sepse". Se evoluísse com disfunção orgânica, o quadro era rotulado como "sepse grave". Essa abordagem foi abandonada porque os critérios da SIRS são pouco específicos e a terminologia em estágios podia atrasar o reconhecimento da real gravidade.
Com a nova definição — sepse é disfunção orgânica causada por infecção —, o termo "sepse grave" tornou-se redundante e obsoleto. A lógica é direta: se a própria definição de sepse já exige a presença de disfunção orgânica, então toda sepse, por definição, já é grave. Essa simplificação concentra a atenção no que realmente importa: a identificação precoce da falência de órgãos. Da mesma forma, é crucial não confundir sepse com bacteremia, que é a mera presença de bactérias no sangue, um achado laboratorial que pode ou não levar à sepse.
Compreender a definição moderna de sepse é o primeiro passo para combatê-la. O foco mudou da simples presença de uma infecção para a sua consequência mais devastadora: a disfunção orgânica. A mensagem central é a vigilância. Diante de qualquer paciente com infecção que apresente sinais de deterioração em qualquer sistema — neurológico, respiratório, cardiovascular ou renal —, a hipótese de sepse deve ser imediatamente considerada. Pensar em sepse é o ato mais decisivo para iniciar uma cadeia de ações que podem salvar uma vida.
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